De Gutemberg a Nikolas, como a comunicação molda o planeta
A desinformação deixou de ser um subproduto colateral do sistema e tornou-se um potente e perigoso método de poder

A história da humanidade não pode ser lida e compreendida sem a própria história da comunicação. De inscrições em cavernas ao streaming de hoje em dia, passando por transmissões ao vivo via satélite, toda a evolução tecnológica produziu um novo modelo de sociedade e, invariavelmente, poder.
O salto inaugural rumo à massificação da informação ocorreu com Johannes Gutenberg, que, entre 1439 e 1450, desenvolveu a prensa de tipos móveis. O livro impresso torna-se, para usar os termos de Marshall McLuhan, a “Tecnologia que moldou o homem moderno”.
A Bíblia impressa em 1455, por exemplo, não era apenas um feito técnico: era a semente de uma revolução cognitiva. Antes dela, manuscritos eram monopólio das elites clericais e aristocráticas. Assim, com a imprensa, o saber sai dos mosteiros e atinge, ainda que lentamente, a burguesia nascente.
A Reforma Protestante seria impensável sem os panfletos de Lutero; a Revolução Científica não teria irradiado sem os tratados de Galileu e Newton; a Revolução Francesa se alimentaria de panfletos ilustrados e jornais clandestinos. Gutenberg inaugurou o que Elizabeth Eisenstein chamou de “A revolução da imprensa” – não apenas no suporte material da informação, mas na reconfiguração da mente coletiva ocidental.
Opinião Pública
A fixidez dos textos, a reprodutibilidade sem perda de conteúdo e o surgimento da autoria como categoria deram início ao conceito de “opinião pública” que moldou a modernidade.
No século XIX, com o barateamento do papel e a industrialização da impressão, surge o jornal moderno. A imprensa torna-se o “quarto Poder”, fiscal do Estado e canal de formação política das massas. Nas palavras do historiador Jacques Le Goff, “O jornal foi o catecismo da era industrial.”
Mas era um modelo vertical: poucos falavam e muitos ouviam. Era preciso saber ler, ter dinheiro para pagar por um exemplar e sobretudo confiar cegamente no filtro editorial do veículo. Mas isso mudaria com o rádio.
Aldeia global
Na década de 1920, com o advento da transmissão eletromagnética, a voz alcança massivamente os iletrados. Franklin Roosevelt compreendeu isso antes de todos. Seus “fireside chats” – conversas ao pé da lareira – durante a Grande Depressão, mostraram o poder do rádio como instrumento de empatia e mobilização social.
A televisão, nas décadas seguintes, agregaria imagem ao som, criando o que McLuhan definiu como “aldeia global”, onde eventos mundiais podiam ser vivenciados quase em tempo real por milhões. A queda do Muro de Berlim, em 1989, foi não apenas um fato político, mas uma experiência visual planetária. A Guerra do Golfo, transmitida ao vivo pela CNN em 1991, consagrou o conceito de “guerra midiática”.
Mas tanto rádio quanto TV permaneciam modelos unidirecionais. A agenda era ditada de cima para baixo. A internet, que emergiu nos anos 1990, rompe esse paradigma. A comunicação torna-se horizontal, interativa, descentralizada. O Google (1998), o YouTube (2005), o Twitter (2006) e o WhatsApp (2009) são marcos dessa nova ecologia da informação. O poder migra para a capacidade de controlar fluxos informacionais.
O colapso da intermediação
Mas há um ponto de virada ainda mais radical: as redes sociais. Se Gutenberg multiplicou a palavra escrita e os meios de massa ampliaram a audiência, as redes sociais dissolveram a intermediação. Todos falam com todos, mas nem todos dizem algo relevante. A escassez de informação foi substituída pelo excesso. Como disse o filósofo Byung-Chul Han, “Vivemos não mais a era da informação, mas a do ruído”. O problema já não é saber, mas filtrar o saber.
Esse novo ecossistema digital, ancorado em memes, lacrações reducionistas e vídeos curtos sensacionalistas, também produziu um fenômeno inédito: o acesso direto de analfabetos, ignorantes e pobres a todos os tipos de informação e desinformação, já que os conteúdos costumam ser gratuitos. Plataformas como YouTube, TikTok, Instagram e Facebook romperam com a exigência da alfabetização formal para o consumo de conteúdo, ao priorizarem imagem e som sobre texto.
Em um país como o Brasil, onde cerca de 11 milhões de pessoas são analfabetas e quase 60% dos domicílios têm renda de até dois salários mínimos (dados do IBGE), a combinação de gratuidade, audiovisual e algoritmo produziu uma nova massa informada – ou desinformada, a depender do conteúdo consumido -, ou mesmo manipulada, sem jamais ter lido um jornal ou assistido a um telejornal tradicional.
Ressentimento midiático
Como notou o sociólogo Muniz Sodré, vivemos a transição de uma “cultura do escrito” para uma “cultura da performance”, onde o carisma de quem fala importa mais que o conteúdo dito. Com isso, surgem os novos paradoxos. A promessa de democratização esbarra na manipulação algorítmica. O Facebook, que pretendia conectar o mundo, tornou-se também campo fértil para desinformação, discurso de ódio e tribalismo digital.
Já o WhatsApp, ferramenta de comunicação essencial para negócios e entre amigos e familiares, virou igualmente uma plataforma de propaganda política obscura. As fake news têm maior alcance e engajamento do que notícias verdadeiras, segundo um estudo do Massachusetts Institute of Technology (MIT) de 2018.
A mesma tecnologia que permite a um dissidente denunciar abusos em regimes autoritários permite, por exemplo, com igual eficácia, que um extremista espalhe teorias conspiratórias que corroem democracias. O que Castells chamou de “A autocomunicação de massa” tem seu lado sombrio: a desordem informacional que torna indistinguíveis verdade e mentira, opinião e fato, jornalismo e panfleto.
Populismo e oportunistas
A lógica da viralização substitui a da verificação. A emoção vale mais que o dado. A política torna-se espetáculo, a ciência vira palpite e o jornalismo precisa lutar por sobrevivência em meio à avalanche de influencers e conteúdos descartáveis.
Esse novo ambiente comunicacional – caótico, instantâneo e emocional – tornou-se o terreno ideal para o florescimento de lideranças populistas e reacionárias. A desintermediação promovida pelas redes sociais, que rompeu os filtros jornalísticos e institucionais, deu a esses atores acesso direto às massas, sem necessidade de comprovação factual, coerência doutrinária ou responsabilidade institucional.
Se, no passado, o discurso político precisava passar pelo crivo da imprensa, das academias e dos partidos, hoje, basta um celular e uma conta em rede social para construir uma narrativa, mobilizar ressentimentos e propagar slogans. O algoritmo, que recompensa engajamento e polarização, torna o populista um produto perfeito: ele simplifica problemas complexos, aponta inimigos fáceis, se apresenta como “antissistema” e comunica-se num idioma emocional, não racional.
Nikolas e desinformação
Dois exemplos recentes, protagonizados pelo deputado federal Nikolas Ferreira, do PL de Minas Gerais, ilustram com clareza esse fenômeno. Em vídeos viralizados sobre a falsa taxação do Pix e sobre as fraudes no INSS, Nikolas se vale de dados reais, ou parcialmente verdadeiros, para construir narrativas distorcidas, que atiram toda a culpa no atual governo petista enquanto omite, convenientemente, que muitas dessas situações se iniciaram ou se agravaram em administrações do seu próprio grupo político.
A manipulação é estratégica: emocionaliza, simplifica, omite e viraliza. Em vez de esclarecer a população, desinforma. Em vez de dialogar, agita. Em vez de formar opinião, mobiliza ressentimento. Essa conjuntura foi descrita por Yascha Mounk, em O Povo Contra a Democracia, como a “tempestade perfeita”: instituições democráticas enfraquecidas, elites desacreditadas e cidadãos conectados a bolhas ideológicas. Donald Trump, Viktor Orbán, Nayib Bukele e Jair Bolsonaro souberam surfar nesse novo oceano de atenção fragmentada, rejeição à mediação e culto à autenticidade performática.
É também um retorno à oralidade carismática, mas agora amplificada digitalmente. Como apontou a filósofa italiana Donatella Di Cesare, em Il Tempo della Postverità, “O líder populista não argumenta: afirma, repete, impõe”. E faz isso por meio de vídeos, memes, lives e ataques performáticos que viralizam porque são escândalos – não porque são verdade.
Paradoxo da evolução
A desinformação deixou de ser um subproduto colateral do sistema e tornou-se um potente e perigoso método de poder. E num ambiente em que a autoridade é medida em curtidas e compartilhamentos, os reacionários digitais têm larga vantagem sobre aqueles que ainda tentam construir pontes com a razão.
Por fim, o ciclo se fecha: uma revolução tecnológica que nasceu com Gutenberg para ampliar o conhecimento e a liberdade pode estar, paradoxalmente, servindo à construção de novos autoritarismos – mais sedutores, mais sorridentes, mais algoritmicamente eficientes.
Escrevi este texto a partir de um insight sobre o impacto da comunicação nas transformações políticas e sociais ao longo da história. A partir daí, iniciei uma conversa com a inteligência artificial, propondo blocos temáticos, solicitando dados e referências. O que você acaba de ler é fruto dessa interação, em que fui construindo e moldando o texto e a IA me ajudando a refinar o conteúdo, porém sem jamais substituir minha ideia e própria autoria.
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Comentários (3)
Luis Eduardo Rezende Caracik
11.05.2025 22:21Uma abordagem mito inteligente e verdadeira com respeito à evolução das fontes de informação que foram evoluindo e se multiplicando ao longo do temo até a chegada das redes sociais que estão se tornando fontes de deformação. Sugiro num próximo texto, abordar também o surgimento de canais exclusivamente "jornalisticos" como Fox, CNN, PBS, Globolews e outros que aos poucos vão também se transformando em órgãos difusores cada vez menos de notícias, e cada vez mais de opiniões.
Luiz Filipe Ribeiro Coelho
11.05.2025 19:23Texto maravilhoso. Mas peca ao atribuir apenas à direita o uso da desinformação.
Orlando Tambosi
11.05.2025 18:18Não encontrei o livro de Donatella Di Cesare sobre pós-verdade. Erro da IA?