O cambalacho jurídico dos amigos da corrupção
PSOL, PCdoB e Solidariedade ajuizaram no STF uma ação para suavizar os acordos de leniência firmados no Brasil antes de agosto de 2020. Os acordos de leniência da Lava Jato, para ser mais preciso. Prometi falar dos aspectos jurídicos desse cambalacho...
PSOL, PCdoB e Solidariedade ajuizaram no STF uma ação para suavizar os acordos de leniência firmados no Brasil antes de agosto de 2020. Os acordos de leniência da Lava Jato, para ser mais preciso. Já escrevi sobre a tocante preocupação dos três partidos de esquerda com o futuro de empresas que, muito antes de serem flagradas no cartel do petrolão, já faziam do capitalismo brasileiro um jogo de cartas marcadas – um capitalismo de compadres. Prometi falar dos aspectos jurídicos desse cambalacho, ao qual o ministro André Mendonça (foto) resolveu dar trela. Três instituições – o Partido Novo, o Instituto Não Aceito Corrupção e a Associação Nacional dos Procuradores da República – participam do processo e demonstram a patuscada com fartura de razões. Peço um pouco de paciência na leitura porque o assunto é mais cabeludo do que o ministro Mendonça.
Mas adianto uma conclusão. Não há justificativa plausível para que essa ação prospere, nos campos do direito ou da economia, exceto facilitar a participação de empresas como Odebrecht (hoje Novonor) e J&F em grandes negócios, sob a tutela do governo petista. Os bilhões que a holding dos irmãos Batista prometeu pagar em seu acordo de leniência, por exemplo, são um dos fatores que atualmente põem em dúvida sua capacidade de comprar a Braskem e ingressar triunfalmente no setor petroquímico – em parceria com a Previ, o fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil, e sob a bênção de Lula.
Problema 1: Por que rever os acordos anteriores a agosto de 2020? Porque essa foi a data em que o STF, a Controladoria Geral da União (CGU), a Advocacia Geral da União (AGU), o Tribunal de Contas da União (TCU) e o Ministério da Justiça, na época chefiado por André Mendonça (surpresa!), assinaram um Acordo de Cooperação Técnica (ACT) sobre esse assunto. Os partidos de esquerda afirmam que pactos de leniência anteriores precisam se adequar aos parâmetros do ACT, o que na prática significa serem refeitos sob a batuta da CGU. Ora, o ACT diz que a CGU “poderá abrir negociação de termo aditivo com base em solicitação de empresas signatárias de acordos de leniência já celebrados”. Ou seja, os partidos de esquerda querem transformar em obrigação aquilo que é uma possibilidade, uma faculdade conferida tanto à CGU quanto às empresas. Essas entidades poderiam encetar uma nova negociação – se quisessem. Não aconteceu até hoje.
Problema 2: Embora tenha participado das discussões, a Procuradoria Geral da República (PGR) não assinou o tal ACT. Naquela época, como hoje, o chefe da PGR era Augusto Aras. Apesar de ser um crítico ferrenho, inimigo mesmo, do modelo de forças tarefa que deu fôlego à Lava Jato, Aras concluiu que não faria sentido submeter os procuradores da República à tutela da CGU sempre que um acordo de leniência fosse discutido. Esse, aliás, é outro pedido dos partidos de esquerda: que daqui para frente, a CGU ou órgãos correlatos nos estados e municípios sejam senhores de todas as leniências. “E se um município não tiver um órgão desse tipo, o que acontece?”, pergunta Ubiratan Cazetta, presidente da ANPR, em conversa com O Antagonista. “O Ministério Público não vai poder atuar, como aconteceria naturalmente?” Na sua manifestação no processo, a ANPR lembra que o próprio Supremo já reconheceu que todo acordo de leniência precisa ser desenhado levando em conta aspectos administrativos (que estão no âmbito de atuação da CGU) e judiciais (que estão no âmbito do Ministério Público, com seus procuradores e promotores). Não faz sentido, portanto, atribuir superpoderes à CGU, seja para atuar no futuro ou desfazer o que vem do passado.
Problema 3: Os partidos de esquerda dizem que a Lava Jato criou no país um “estado de coisas inconstitucional” e que os acordos de leniência foram assinados por empresas atemorizadas. Estado de coisas inconstitucional é um conceito jurídico relativamente novo, importado da Colômbia. O STF já o aplicou uma vez, em 2015, quando concluiu que os presídios brasileiros violavam continuamente os direitos fundamentais dos detentos, devido à falência sistêmica das políticas carcerárias. A corte estabeleceu parâmetros cumulativos para que se possa falar de estado de coisas inconstitucional: violação generalizada de direitos humanos; omissão estrutural dos três poderes; necessidade de uma solução complexa que exija a participação de todos os poderes. É uma piada sugerir que isso tenha acontecido nas delações premiadas individuais da Lava Jato, submetidas ao controle de várias instâncias judiciais, e mais ainda nos acordos de leniência, firmados por executivos que não estavam na cadeia e cujo patrimônio pessoal não estava em jogo. Lembremos que empresas como a Odebrecht procuraram elas mesmas o Ministério Público para propor o ajuste de suas condutas e o ressarcimento – devidamente negociado – dos danos que causaram. Como diz o constitucionalista Miguel Reale, que assina a petição do Instituto Não Aceito Corrupção, “é notório terem sido as empresas devidamente assistidas por eminentes causídicos, apresentando-se voluntariamente, com provas documentais e contábeis, para a leniência”. Empresas têm interesses e não sentimentos como o medo.
Problema 4: Os partidos de esquerda ajuizaram uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), um tipo de ação que pretende fixar o conteúdo e o alcance de uma norma constitucional e não pode depender da análise prévia de fatos controvertidos. Ora, há fatos controvertidos de sobra nessa história. Não se pode afirmar de antemão que todos os acordos de leniência anteriores a 2020 foram assinados em circunstâncias abusivas. Seria preciso analisar cada caso. Os partidos de esquerda sabem disso, por isso recorreram à malandragem do “estado de coisas inconstitucional”, tentando criar um guarda-chuva para abarcar todos os acordos – inclusive, por hipótese, aqueles que as empresas signatárias consideraram e ainda consideram adequados. Uma ADPF não presta para o objetivo pretendido. Deveria ser arquivada logo de cara. Aceitá-la é aceitar um cambalacho. Mas do STF, hoje em dia, nunca se sabe o que virá.
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