Rodolfo Borges na Crusoé: O cemitério dos vivos ao vivo
Os torcedores de Sport e Santa Cruz que se enfrentaram com crueldade e perversidade nas ruas do Recife já morreram de certa forma

Desenvolvi nos últimos meses uma obsessão pelas reações de torcedores diante das derrotas de seus times. Os reacts começaram com os narradores dos clubes, que transmitem as partidas para uma determinada torcida, torcendo junto, e derretiam junto com seus times ao perder, em lamentos e impropérios transmitidos ao vivo e reproduzidos nos dias seguintes em meio a deboches por seus adversários.
Havia nessas reações de raiva e frustração uma espontaneidade que se perdeu na internet, onde a promessa de originalidade se esvaiu em cálculos para simular originalidade. Não por acaso, o mesmo tem ocorrido com os reacts de torcedores, nos quais a frustração agora soa calculada, numa auto-humilhação exagerada, friamente elaborada em busca de cliques.
Era sobre isso que eu pensava em escrever enquanto lia O cemitério dos vivos (Companhia das Letras), de Lima Barreto. para analisar a loucura espontânea do torcedor diante de seu time, seja de alegria ou tristeza.
“Compra barulho com doentes e guardas, descompõe-nos, como já disse; mas, dentro em pouco, está ele abraçado com aqueles mesmos com que brigou há horas, há dias”, diz Vicente Mascarenhas, narrador da parte ficcional do livro de Barreto, ao descrever um dos colegas do hospício que frequentou por causa da bebida.
Sodomia a céu aberto
Era sobre isso que eu me preparava para escrever, mas uma loucura menos romântica, mais intensa, destrutiva e violenta atravessou o caminho. As torcidas organizadas de Sport e Santa Cruz se enfrentaram nas ruas do Recife antes do clássico, num confronto que envolveu até sodomia a céu aberto, ao lado do esgoto a céu aberto da capital pernambucana. Tudo gravado e compartilhado pelas redes sociais.
“Parece tal espetáculo com os célebres cemitérios de vivos, que um diplomata brasileiro, numa narração de viagem, diz ter havido em Cantão, na China. Nas imediações dessa cidade, um lugar apropriado de domínio público era reservado aos indigentes que se sentiam morrer. Dava-se-lhes comida, roupa e o caixão fúnebre em que se deviam enterrar. Esperavam tranquilamente a Morte”, descreve Mascarenhas.
Em outra passagem, o narrador diz que “o que todos julgam, é que a coisa pior de um manicômio é o ruído, são os desatinos dos loucos, o seu delirar em voz alta”. Mas isso seria um engano:
“Perto do louco, quem os observa bem, cuidadosamente, e une cada observação a outra, as associa num quadro geral, o horror misterioso da loucura é o silêncio, são as atitudes, as manias mudas dos doidos”.
Os olhos tristes
Assistir a um homem violentar um adversário desacordado no asfalto é chocante, mas não apenas pela cena de violência. É perturbadora também a tentativa de entender o que levou uma pessoa à condição de executar um ato como esse. As condições de brutalidade e miséria em que alguém assim deve viver.
“Dizia Catão, segundo Plutarco, que os sábios tiram mais ensinamentos dos loucos que estes deles, porque os sábios evitam os erros nos quais caem os loucos, enquanto estes últimos não imitam os bons exemplos daqueles”, reflete o narrador de Barreto.
Imaginar que possa sair alguma lição…
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