Vítima ou cúmplice? Artigo em O Antagonista é uma paulada no nariz
Felipe Moura Brasil, ontem, tornou meu dia pior. Mas, hoje, me fez alguém melhor

Pertenço a uma espécie cada vez mais rara e a caminho acelerado da extinção: o leitor. Mas leitor mesmo! De um texto inteiro, e não apenas da manchete e do lead. Leitor de parágrafo por parágrafo, frase por frase, do tipo atento, que pausa a leitura para refletir sobre o enunciado imediatamente anterior. Leitor que dedica, mais que alguns minutos ou horas, dias a refletir sobre o tema. Leitor que, principalmente, perturba-se com o conteúdo quando suficientemente profundo e merecedor.
Faz mais de 12 horas que tento dirigir o primoroso – mais um! – artigo do Felipe Moura Brasil, publicado na quarta-feira, 16, no O Antagonista. O título, “É proibido chamar ladrão de ladrão”, já é uma paulada no nariz, de tão cruel e verdadeiro. O corpo do texto é uma sequência de socos na boca do estômago, e a cada linha, as sinapses vão me lembrando de personagens reais, muitas vezes próximas e cotidianas, e de situações que me causam profunda tristeza por minha tamanha impotência.
A conclusão, mais que a constatação de um quadro desolador e, ao menos em médio prazo, sem solução, me leva a uma severa autocrítica como indivíduo, muitas vezes testemunha ocular de fatos que até recrimino, mas, em silêncio cúmplice, acabo aceitando como algo normal, afinal, “é do jogo”. Felipe escreve: “Um dos piores legados da impunidade geral é não poder chamar ladrão de ladrão”. Eu acrescento: um dos piores legados da impunidade geral é nos fazer acreditar que é assim mesmo.
No divã
Os mandatários do Poder Público não caem do céu nem vêm de Marte. Todos saíram da sociedade civil e foram parar nas altas castas dos Três Poderes por nossa conta e ordem. A leniência com que tratamos deslizes diários, chamando-os de “pequenos”, cresce à medida em que a caneta ganha força. “Ladrões de todos os matizes supostamente ideológicos, com poder concedido por variados segmentos da população, ainda se articulam entre si para minar os mecanismos de combate à ladroagem” (FMB).
Dentre os “mecanismo de combate à ladroagem” não-formais, não-legais e não-visíveis está a mais estrita e incondicional intolerância, também, pouco a pouco, minada pelo status quo – aqui, novamente, faço um mea culpa e me penitencio por rebaixar minha própria régua. “Com o desmantelamento desses mecanismos, os ladrões passam a roubar livremente, institucionalizam determinados tipos de roubo e corrompem ainda mais a administração pública”, pontua Felipe. E corrompem, igualmente, a moral individual, digo eu.
“Ah, Ricardo, não seja tão duro consigo mesmo. Você é um cara correto, não rouba ninguém, não prejudica ninguém, é fiel aos seus princípios e valores, ajuda de boa fé a todos que te procuram”. Sim. É fato. Orgulho-me verdadeiramente do ser humano que sou. Mas, na boa, despindo-me dos meus escudos autoprotetores e mergulhando fundo na reflexão que o Felipe propõe, estou anos-luz – ainda que muito acima da média – de escapar ileso de um crivo isento e honestamente rigoroso. FMB, ontem, tornou meu dia pior. Mas, hoje, me fez alguém melhor.
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Comentários (6)
Mariana Luisa Garcia Braido
18.04.2025 05:50Aconteceu com muitos de nós.
Luis Eduardo Rezende Caracik
17.04.2025 15:05Passar a aceitar algo que antes considerávamos abominável, apenas pela frequência cada vez maior com que o abominável ocorre, ou é uma evidência de degradação ou o simples reconhecimento de que o antes se considerava abominável, já não mais o é. A sabedoria está em saber não deixar a degradação engolfar você.
Fabio B
17.04.2025 10:04Se acostumar com o inaceitável é a pior derrota que o brasileiro cada vez mais se aperfeiçoa.
Jacqueline Santos
17.04.2025 09:23Ricardo, sempre assertivo!!
Amaury G Feitosa
17.04.2025 08:47Há muito não chamo ladrão de ladrão, gabiru é mais chique.
Ana Maria Bandeiea
17.04.2025 08:45Excelente reflexão!