Por que é bom para o Brasil um papa agostiniano
Combatido por Santo Agostinho, o maniqueísmo tomou o debate público brasileiro

Que milhões de pessoas saiam compartilhando postagens de políticos, repletas de distorções usadas para limpar o lado dele na sujeira dos adversários, é sintoma do quanto o populismo, com retórica de esquerda e de direita, turbina a visão maniqueísta de um povo.
O “nós” contra “eles” contemporâneo leva muita gente, dentro e fora do Brasil, a admitir a mentira como arma e como método, trocando o amor pela verdade (que, na doutrina cristã, é o próprio amor a Deus) pelo corporativismo tribal.
Em tempos como este, é um bom sinal que o americano Robert Francis Prevost, o novo papa, Leão XIV, seja agostiniano, porque Santo Agostinho (354-430), convertido ao cristianismo, combateu o maniqueísmo original, ou seja, a seita originada pelo persa Manés ou Mani (215-275) e divulgada com rapidez tanto pelo Oriente quanto pelo Ocidente em razão do próprio simplismo com que apresentava e solucionava o problema do mal, que, assim, podia ser transfigurado em bem ou vice-versa, de modo ardiloso e obscuro.
“Agostinho, que aderiu ao maniqueísmo na sua juventude e durante anos se lhe conservou mais ou menos ligado, sem grande convicção aliás, acabou por se tornar o seu adversário mais forte e persistente, contra a seita combatendo durante toda a vida em obras que ainda hoje são actualíssimas, pois o dualismo é endémico“, sintetizou o magistrado e tradutor João Dias Pereira, em nota biográfica da edição portuguesa do clássico agostiniano “A cidade de Deus”.
Para sanear o ambiente cultural em meio aos dualismos atuais – como nos Estados Unidos, entre esquerda identitária e direita trumpista; e no Brasil, entre lulismo e bolsonarismo –, convém refutar alegações maniqueístas, como Santo Agostinho fez não como alguém de fora dos embates morais, mas, de dentro, “pela unidade da fé católica, pela verdade da mensagem cristã e pela ordem e paz que Roma nos legara” (nas palavras do prefaciador).
Ou, como escreve o próprio autor no referido livro:
“Os cristãos são chamados a buscar Deus não fora do mundo, mas em sua experiência da vida humana dentro do mundo, em vocações seculares e religiosas — na verdade, em toda a vida.”
O que diz o papa Leão XIV sobre ideologias e polarização?
Foi nessa linha agostiniana que o novo papa anunciou em 8 de maio de 2025:
“Deus nos ama, a todos nós, o mal não prevalecerá. Estamos todos nas mãos de Deus. Sem medo, unidos, de mãos dadas com Deus e entre nós, seguiremos em frente. Somos discípulos de Cristo, Cristo vai à nossa frente, e o mundo precisa da sua luz. A humanidade precisa dele como uma ponte para alcançar Deus e o seu amor. Ajuda-nos a construir pontes com o diálogo e o encontro para que todos possamos ser um só povo, sempre em paz.”
A fala condiz com a entrevista concedida por Robert Francis Prevost em setembro de 2023, logo após ter sido nomeado cardeal pelo papa Francisco, ao site da Ordem de Santo Agostinho:
“As ideologias adquiriram maior poder do que a experiência real da humanidade, da fé, dos diferentes valores que vivemos.” Para Prevost, “é um desafio, sem dúvida”, harmonizar unidade com diversidade, “principalmente quando a polarização se tornou a forma de operar em uma sociedade que, em vez de buscar a unidade como princípio fundamental, oscila de um extremo ao outro“.
“A diversidade também não pode ser entendida como um modo de vida sem critérios ou sem ordem. Quando uma ideologia se torna, por assim dizer, a dona da minha vida, já não consigo mais dialogar com outra pessoa, porque já decidi como as coisas serão. Isso, obviamente, torna muito difícil ser Igreja, ser comunidade, ser irmãos e irmãs”, concluiu.
Ou seja: o papa Leão XIV aponta a supremacia da ideologia, o modus operandi da polarização e a oscilação entre extremos como obstáculos à experiência real, ao diálogo e à vida comunitária.
O que diz Jonathan Haidt sobre o maniqueísmo?
O professor nova-iorquino Jonathan Haidt, doutor em psicologia social pela Universidade da Pensilvânia, também abordou o tema no livro “A mente moralista – Por que pessoas boas são segregadas por política e religião”.
“O profeta persa do século III, Mani, pregou que o mundo visível é o campo de batalha entre as forças da luz (bondade absoluta) e as forças das trevas (maldade absoluta). A pregação de Mani evoluiu para o maniqueísmo, uma religião que se espalhou pelo Oriente Médio e influenciou o pensamento ocidental”, resumiu.
Para Haidt, “a classe política norte-americana se tornou muito mais maniqueísta desde o início dos anos 1990”, quando deixou de haver “esquerdistas e direitistas em ambos os partidos, o que facilitava a formação de equipes bipartidárias”. “Atualmente, o republicano mais à esquerda é tipicamente mais direitista que o democrata mais à direita. E uma vez que os dois partidos se tornaram ideologicamente puros – um partido esquerdista e um partido direitista -, o aumento do maniqueísmo era certo.”
Como a arena política de outros países, inclusive a brasileira, emula o embate interno dos EUA, essa transformação continua gerando efeitos pelo mundo, recentemente agravados pelos algoritmos das redes sociais, que promovem conteúdo emocional e divisivo para manter as pessoas online. As refutações de conteúdos enganosos desse tipo incomodam, claro, devotos de políticos que os disseminam.
O que diz Santo Agostinho sobre o ódio à verdade?
“Por que é que a verdade gera o ódio?”, questiona o próprio Santo Agostinho em seu livro “Confissões”, que antecipou, em séculos, numerosos estudos de psicologia social. Ele parte da premissa expressa pelo dramaturgo e poeta romano Terêncio (185 a.C.-159 a.C.) em sua comédia “Andria”, segundo a qual a complacência (ou o obséquio, o favor) gera amigos; a verdade (ou a franqueza), ódio.
Antes de refletir sobre a natureza do autoengano, Santo Agostinho relata que todos dizem que preferem encontrar alegria na verdade que na falsidade. Também conta ter encontrado “muitos com desejo de enganar outros”, mas “ninguém que quisesse ser enganado”, ao menos não declaradamente.
“Por que é que os homens têm como inimigo aquele que prega a verdade, se amam a vida feliz que não é mais que a alegria vinda da verdade? Talvez por amarem de tal modo a verdade que todos os que amam outra coisa querem que o que amam seja verdade. Como não querem ser enganados, não se querem convencer de que estão em erro. Assim, odeiam a verdade, por causa do que amam em vez da verdade.”
Milhões de brasileiros, em vez da verdade, amam líderes populistas, seus aliados políticos e demais porta-vozes que faturam com narrativas maniqueístas em bolhas virtuais, posando de representantes do bem na luta contra o mal, a despeito de atos comuns a ambos os lados, omitidos em suas respectivas propagandas. Amam pertencer a determinado grupo, amam odiar o outro lado, amam sinalizar virtude com um adesismo cego, e amam achincalhar os “traidores” e “isentões” – que recusam tamanha complacência, tamanha inversão de valores.
“Sou um filho de Santo Agostinho. Um agostiniano”, disse Robert Francis Prevost, ao assumir o papado em lugar do falecido papa Francisco (três dias antes de apelar pela paz na Ucrânia, na Faixa de Gaza e na Caxemira).
Que bom, repito. Se agir como tal, o papa Leão XIV lançará ao menos alguma luz para as pessoas que jamais confessam, nem sequer a si próprias, seus pequenos e grandes enganos.
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O artigo acima é uma adaptação de 4 artigos que eu, Felipe, publiquei anos atrás sobre esses temas:
– “O que é populismo e como Lula e Bolsonaro usam” (4/7/2022);
– “O maniqueísmo raiz de Lula e Bolsonaro” (10/5/2022);
– “Por que Lula se equipara a Deus” (15/2/2022);
– “Bolsonarismo x cristianismo” (24/9/2021).
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Comentários (4)
Arnaldo
12.05.2025 18:17Simplesmente, EXCEPCIONAL o artigo. Traduz o que passamos no mundo atual. Parabéns Felipe
Edilene Barreto
11.05.2025 17:38Excelente artigo !!! Parabéns
Marian
11.05.2025 12:28Que seja equilibrado, e que definitivamente não abençoe a bandeira de grupo que invade, depreda e toma pra si o que não trabalharam para conquistar. Nós e eles não? Sim, até perceberem que perderam a narrativa.
Lecio Ferreira
11.05.2025 11:08Então o Papa vai levar a pecha de isentão? Será mais odiado que esse último "comunista" ou algum da "extrema direita ".