O lobo em pele de defensor das crianças
O patriotismo é o último refúgio dos canalhas, dizia o inglês Samuel Johnson. De forma análoga, a defesa das “nossas crianças” é o primeiro refúgio dos autoritários. Nada mais fácil para os lobos que desejam ditar a você e a mim o que ver, ler, dizer e pensar do que vestir a pele macia do defensor dos inocentes.[…]
O patriotismo é o último refúgio dos canalhas, dizia o inglês Samuel Johnson. De forma análoga, a defesa das “nossas crianças” é o primeiro refúgio dos autoritários.
Nada mais fácil para os lobos que desejam ditar a você e a mim o que ver, ler, dizer e pensar, do que vestir a pele macia do defensor dos inocentes. Para um lobo como o delegado Anderson Torres (foto), que o bolsonarismo elevou à posição de ministro da Justiça, o disfarce lhe daria inclusive o direito de interferir em serviços de vídeo pagos por adultos, para decidir o que eles podem ou não assistir dentro de casa. Mas não é verdade.
Ao obrigar plataformas de streaming a parar de distribuir o filme “Como Se Tornar o Pior Aluno da Escola”, sob pena de multa, Torres e seu ministério abusam das leis e da Constituição e, mais uma vez, põem o Judiciário na incômoda posição de precisar deter o governo Bolsonaro.
Como já escrevi ontem, não é preciso elogiar o filme roteirizado por Danilo Gentili, nem a cena protagonizada pelo humorista Fábio Porchat (em que o seu personagem, um vilão na história, tenta convencer dois adolescentes a masturbá-lo), para discordar da tentativa do governo de censurá-los.
Se Bolsonaro, Torres, Damares et caterva desejam execrar o filme, que o façam em entrevistas, artigos ou nas redes sociais. Mas, depois de duas décadas de estupidez censória na ditadura militar, e de três décadas de normalidade democrática, já deveria ser ponto pacífico que não cabe ao governo tapar os olhos e os ouvidos de quem quer que seja com suas patas pesadas.
Ele não pode privar indivíduos autônomos da oportunidade de julgar um conteúdo, ainda mais ficcional, por si próprios. Quanto às crianças, cabe aos pais zelar por elas neste campo, e não à polícia estatal. (Não é esse, aliás, o argumento central dos bolsonaristas que desejam educar seus filhos em casa? Decidam-se.)
O governo se contorce para justificar a medida que tomou. Ele menciona como fundamento da proibição, para começar, uma nota técnica da Secretaria Nacional do Consumidor que não está disponível no site do ministério, nem da secretaria (e que não foi encaminhada a este site quando o pedido foi feito à assessoria de comunicação).
Depois, de cima para baixo na hierarquia das leis, invoca o artigo 227 da Constituição, que fala dos deveres compartilhados pela família, pela sociedade e pelo estado em relação à criança. Considerar que a censura oficial é um meio legítimo de cumprir esse dever equivale a pôr abaixo todo o arcabouço de uma sociedade aberta.
Vem em seguida a citação de dois artigos do Código de Defesa do Consumidor (e de um decreto que o regulamenta), justificando a obrigação imposta às plataformas de streaming. O recurso ao CDC revela como todo o argumento é tortuoso: não é a criança enquanto tal, mas “a criança e o adolescente consumerista” que se deseja proteger de uma (falsa) apologia à pedofilia.
Finalmente, cita-se uma lei que trata das políticas públicas para a primeira infância e que pouco tem a ver com este caso, uma vez que o próprio sistema de classificação etária só liberou o filme para espectadores a partir dos 14 anos.
Esse, aliás, é o terreno onde a tropa bolsonarista deveria ter atuado, se desejasse fazer algo: deveria ter iniciado um processo para reenquadrar o filme nas normas de classificação etária. Essa é a contribuição razoável que o governo, desde há muito, tem dado aos pais, na tarefa de decidir aquilo que seus filhos devem ver, ou não.
Vale perguntar se essa sinalização sobre o público maduro para assistir ao filme falhou quando ele foi lançado, em 2017, e por quê. Não vale fazer com que Anderson Torres substitua todos os pais do Brasil.
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