O porco nosso de cada dia
Os americanos não veem nada de errado na troca de emendas por votos dentro do Congresso. Acham que isso é parte natural do jogo político - do esforço para compor maiorias na votação de projetos polêmicos. Fiz essa descoberta tentando entender como funciona nos Estados Unidos o mecanismo equivalente ao das famigeradas emendas do relator...
Os americanos não veem nada de errado na troca de emendas por votos dentro do Congresso. Acham que isso é parte natural do jogo político – do esforço para compor maiorias na votação de projetos polêmicos. Fiz essa descoberta tentando entender como funciona nos Estados Unidos o mecanismo equivalente ao das famigeradas emendas do relator.
Um dos primeiros textos que li não poderia ser mais direto. “Greasing the Wheels” (Azeitando a Engrenagem) foi publicado em 2004 por uma renomada cientista política da Universidade Yale, chamada Diana Evans. Logo de cara, ela diz: “O argumento deste livro é que uma importante estratégia por meio da qual líderes de coalizão criam maiorias legislativas e aprovam leis controvertidas, mas de interesse geral, é pela compra de votos dos parlamentares, um a um, favor a favor.”
Ela escreve exatamente isso: compra de votos. Sem achar que é pecado.
Mandei um email para a professora e ela respondeu que nunca houve muita controvérsia em torno dessa barganha, porque os eleitores entendem que, “se os seus representantes decidem trocar votos por recursos para a sua base política, podem justificar esse ato como permuta legítima, e democrática, entre benefícios nacionais e locais. Os americanos desde sempre esperam que os políticos que elegem sejam capazes de equilibrar esses dois interesses”.
Mas, então, por que o uso dessas “emendas distributivas” (segundo o linguajar técnico) foi proibido por mais de uma década nos Estados Unidos, sendo retomado apenas no começo deste ano de 2021?
O dinheiro que um político destina à sua base eleitoral por meio de emendas tem um nome bastante pitoresco entre os americanos: pork barrel, que significa, literalmente, “barril de carne de porco”. A origem da expressão é nebulosa, mas parece que tem a ver com a distribuição de comida entre os escravizados, no começo do século 19.
Há tempos a direita americana considera que o pork barrel têm um impacto fiscal nocivo e aumenta o papel do Estado na vida dos cidadãos, quando esse papel deveria ser mínimo.
Embora os democratas, em geral, sejam mais tolerantes com a prática, observando que ela nunca representa mais de 1% dos gastos orçamentários, muitos também acham que o uso de recursos federais com obras paroquiais é injusto, pois esse dinheiro só deveria ser usado em projetos que proporcionassem benefícios universais.
Por volta de 2006, começou a se formar uma tempestade perfeita contra o pork barrel.
Houve dois ou três casos comprovados de corrupção, como o de um deputado federal condenado a oito anos de prisão por ter aceitado propina de um fabricante de armamentos, para embutir uma emenda no orçamento federal.
Grupos organizados como os Citizens Against Government Waste (Cidadãos Contra o Desperdício no Governo) e os Porkbusters (Os Caça-porcos) começaram a desentranhar, do conjunto de emendas distributivas, algumas capazes de causar escândalo. O exemplo clássico é o da emenda que possibilitou a construção da “Ponte Para Lugar Nenhum”, ligando dois vilarejos nos confins do Alasca, ao custo de milhões de dólares.
Ganha um retrato da ministra Rosa Weber quem adivinhar qual foi o terceiro problema. Percebeu-se que o processo legislativo que viabilizava o pork barrel era, de propósito, intransparente. As emendas eram incluídas nos relatórios das subcomissões do orçamento na última hora, e aprovadas sem que a maioria dos parlamentares sequer soubesse que elas estavam lá. Os nomes dos beneficiados ficavam sem registro.
Por causa de tudo isso, o pork barrel foi proscrito em 2010.
Seu retorno aconteceu neste ano, devido à percepção de que muitas obras relevantes de impacto regional, como estradas vicinais, ficaram estagnadas quando o dinheiro das emendas parlamentares secou. E também porque a crescente polarização política nos Estados Unidos reduziu enormemente a eficiência do Congresso, sem que ninguém enxergasse meios de superar as divisões.
Andrew Sidman, outro acadêmico dedicado ao estudo do pork barrel, resume assim o argumento: “Uma das grandes falhas de nosso sistema político é hoje a incapacidade de legislar sobre temas importantes. Um meio para que os líderes partidários conseguissem fazer isso no passado era o pork barrel – a capacidade de trocar votos por outras vantagens políticas que os parlamentares desejam.” Sidman não tem certeza de que o pork barrel, sozinho, é capaz de superar a barreira da polarização, mas o mecanismo, ao menos, já foi testado.
O que tudo isso diz a respeito da situação brasileira? O modo americano de encarar o toma lá dá cá do pork barrel parece ser mais realista do que o brasileiro. O cidadão não se escandaliza com o fato de que os parlamentares, em geral, desejam renovar seus mandatos, e por isso tentarão levar recursos até sua base eleitoral. Ele também não pressupõe que o toma lá dá cá sempre é um comportamento criminoso.
Um indício de que essa troca talvez seja inescapável está no fato de que, em 2015, tentou-se evitar, no Brasil, a compra de votos pelo governo, tornando obrigatória a execução das emendas individuais de que dispõem os deputados e senadores. No entanto, cinco anos depois, a barganha retornou, agora por meio das emendas de relator – e com o poder sobre os recursos pendendo mais para os caciques do Congresso do que para o presidente.
Isso significa que, num sistema presidencialista tão fragmentado quanto o brasileiro, aceitar que a atividade política não se alimenta somente de ideais elevados talvez seja a única maneira de evitar que, de quatro em quatro anos, o eleitor procure um anjo ou um salvador da pátria para levar à Presidência.
Isso não significa, é claro, que os políticos podem se achar no direito de usar o dinheiro público como bem entenderem. A volta do pork barrel nos Estados Unidos foi condicionada a regras estritas de transparência e à limitação das maneiras como os recursos podem ser usados. Os americanos tomaram essas precauções, apesar de serem poucos os casos comprovados de corrupção. Os brasileiros não poderiam fazer exigências menores, sendo tão cotidiano o uso criminoso e abusivo de emendas que poderiam ser legítimas.
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