Josias Teófilo na Crusoé: A dama do cavalo alado
O nome de um bordel no centro do Rio de Janeiro, cujo panfleto passou em minhas mãos um dia desses, enseja algumas reflexões
![avatar](https://cdn.oantagonista.com/uploads/2024/01/cropped-favicon-300x300-1.webp)
![Josias Teófilo na Crusoé: A dama do cavalo alado](https://cdn.oantagonista.com/uploads/2024/06/Traviata.jpg)
Eu estava caminhando no centro do Rio de Janeiro, na rua ao lado do Theatro Municipal, logo após a estátua de Carlos Gomes, quando recebi um panfletinho, de um sujeito que não cheguei a ver o rosto, onde estava escrito: A Dama do Cavalo Alado.
Nele havia um endereço e dizia que tinha várias moças. Ou seja, era um puteiro.
Minha imaginação foi nas alturas com esse nome mitológico, com alta carga simbólica, ancestral.
Não, eu não fui ao puteiro. O importante aqui é o nome. Cheguei ao Rio de Janeiro para ver a ópera La Traviata, de Giuseppe Verdi, numa montagem de André Heller-Lopes. Foi em novembro do ano passado.
No ônibus entre São Paulo e o Rio de Janeiro aconteceu de uma mulher com mais de 200 quilos sentar logo ao meu lado esquerdo. Evidentemente ela não cabia no assento dela e ocupou metade do meu. Mas não só isso: com o movimento do ônibus minha perna esquerda foi sendo engolida pela banda direita da bunda da moça.
A imagem de fundo do celular era ela com um homem e duas crianças. Pensei: “Ela teve filhos, começou a engordar na gravidez e não parou mais”. Ela mandava áudios mas eu não ouvia pois estava com meu fone. Acontece que o meu fone descarregou e passei a ouvir o que ela mandava. Algum momento ela começou a falar que ia filmar mais conteúdos para o seu Onlyfans. Sim, a moça com mais de 200 quilos cuja banda direita da bunda tinha engolido minha perna esquerda no banco, tinha um Onlyfans.
Passei a pensar em como a profissão mais antiga do mundo — aquela da Traviata, que significa transviada — digitalizou-se. Sendo que uma puta na era anterior à internet podia mais facilmente deixar a prostituição — e seu passado poderia ser esquecido. Mas a “webprostituição” deixa rastros, que podem ficar circulando futuramente na internet. Penso nas senhoras respeitáveis, já com netos, que fizeram filmes eróticos nos anos 1980. O tempo deixa muita coisa para trás, felizmente. Veremos como a internet vai lidar com os arquivos de Onlyfans e similares. Será que vão desaparecer com o tempo? Ou será que os arquivos vão permanecer circulando e atormentando aquelas que os produziram?
Ora, a chave para o amor a essas prostitutas tão importantes na história do drama, como a Traviata, é não a imagem — aquilo que o Onlyfans fornece — mas a imaginação. O segredo do amor de Herculano por Jeni em Toda Nudez Será Castigada, de Nelson Rodrigues, é que ela resolveu transar com todos menos com ele. Ele se apaixona perdidamente e quer transformá-la numa mulher pura, isolando-a do mundo — o que se torna a sua desgraça. O segredo do amor de Swann por Odette no Em Busca do Tempo Perdido é também a imaginação: ela (uma cortesã vulgar) o despreza, o faz esperar noites a fio, ter ciúmes, fazer tudo por ela. E ele (um aristocrata, com um gosto refinado para artes) termina por desejá-la profundamente, e casar-se com ela.
Leia mais aqui; assine Crusoé e apoie o jornalismo independente.
Os comentários não representam a opinião do site; a responsabilidade pelo conteúdo postado é do autor da mensagem.
Comentários (0)