Entre o idiota da vila global e o antiamericanismo
Jair Bolsonaro teve uma política externa no começo de seu governo, formulada pelo ex-chanceler Ernesto Araújo. No papel, ela era uma mistura sem pé nem cabeça de religião, nacionalismo, anticomunismo e crítica da decadência ocidental. Na prática, traduzia-se em alinhamento com Donald Trump, agressões verbais à China e discurso mentiroso sobre o meio ambiente...
Jair Bolsonaro (foto) teve uma política externa no começo de seu governo, formulada pelo ex-chanceler Ernesto Araújo. No papel, ela era uma mistura sem pé nem cabeça de religião, nacionalismo, anticomunismo e crítica da decadência ocidental. Na prática, traduzia-se em alinhamento com Donald Trump, agressões verbais à China e discurso mentiroso sobre o meio ambiente.
Depois da queda de Araújo, o Itamaraty recobrou um pouco a voz, mas ainda precisa lidar com os desatinos de Bolsonaro.
Em meio à invasão da Ucrânia, um dos acontecimentos mais importantes do último meio século, nosso antipresidente só se importa com o preço dos combustíveis e o acesso a fertilizantes russos, pelo impacto que podem ter em sua campanha à reeleição.
Por isso, levou quase uma semana, e muito contorcionismo nas declarações oficiais, para que os diplomatas brasileiros conseguissem tirar Bolsonaro de uma posição de franca simpatia por Vladimir Putin para uma posição de “neutralidade”.
Bolsonaro não tem ideia de como posicionar o Brasil de forma estratégica nas grandes questões internacionais, nem noção do peso simbólico de seus gestos e palavras. Ele é o idiota da vila global. Não vou recriminar ninguém por dar à palavra “idiota” o sentido corriqueiro, mas eu a estou empregando no sentido etimológico: o de um homem leigo em questões políticas, inteiramente voltado aos seus interesses privados.
A política externa do PT não é amadorística. Ela dialoga com a tradição diplomática brasileira, ao mesmo tempo que procura inflexioná-la, com o propósito correto de alargar a influência do Brasil no mundo.
O artigo “Política Internacional e o Brasil no Mundo: da unipolaridade consentida à multipolaridade possível”, publicado por Celso Amorim na recém-lançada revista do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), assenta as bases do programa de governo da candidatura petista nessa área. Amorim foi Ministro das Relações Exteriores de Lula (foto) e lidera as discussões sobre política externa no entorno do ex-presidente.
O conceito-chave é o de multipolaridade. Ele tanto descreve um processo pelo qual o mundo está passando quanto serve de objetivo que a diplomacia brasileira deveria promover. O mundo multipolar é aquele em que não existe um poder incontrastável. Depois de três décadas em que os Estados Unidos foram esse poder, a ascensão da China mudou o cenário e abriu oportunidades. “Países como Brasil e Índia valorizaram a ideia de multipolaridade e buscaram contribuir para sua realização prática, com a inclusão de nações em desenvolvimento no jogo político global”, escreve Amorim.
O ex-chanceler também diz que, neste momento, não é possível saber se teremos “uma bipolaridade com traços multipolares”, ou seja, um mundo inteiramente organizado em torno das potências EUA e China, ou um “mundo multipolar, com dominância bipolar” – o que significa que países ou blocos econômicos conseguirão ter mais peso em face dos dois dois gigantes. Em qualquer dos dois casos, um objetivo de nações como o Brasil deveria ser a reforma de organizações multilaterais como a ONU ou a OMC, por meio das quais um protagonismo maior pode ser alcançado.
Na primeira entrevista que deu sobre o conflito da Ucrânia, Celso Amorim disse que sanções pesadas contra a Rússia a empurrariam para o abraço da China, com a possível formação de um bloco de influência eurásico. Lula, em sua primeira fala, ressaltou a impotência da ONU e de seu Conselho de Segurança, e disse que era preciso mudá-los, para que tivessem relevância. Tudo conforme o roteiro esboçado acima.
A política exterior do PT, no entanto, é desfigurada pelo antiamericanismo – uma doença senil, e não infantil, como escrevi num outro texto. Essa moléstia está na origem do post do PT do Senado, depois excluído, que primeiro condena “a política de longo prazo dos EUA de agressão à Rússia”, para só então observar que a invasão da Ucrânia desrespeita as leis internacionais. Da mesma forma, Lula fez questão de comparar a movimentação russa aos ataques americanos ao Afeganistão e ao Iraque.
A política externa americana tem inúmeras manchas, da justificativa mentirosa para a invasão do Iraque à displicência com que o país se retirou do Afeganistão. Faz sentido, inclusive, argumentar que o incentivo à expansão da Otan, depois de 1991, foi um movimento arrogante e desnecessário, que hoje fornece a Vladimir Putin uma desculpa para invadir a Ucrânia.
Mas a crítica aos Estados Unidos se transforma em antiamericanismo quando serve para justificar ou desculpar barbaridades. As ditaduras cubana e venezuelana não perseguem dissidentes, elas apenas se defendem do “imperialismo”. A lenta asfixia da sociedade civil de Hong Kong pela China pode ser ignorada. A guerra de Putin é uma reação a “agressões americanas de longo prazo” e não a tentativa de escravizar um país vizinho. O PT não repudia violações à democracia em países estrangeiros porque opor-se ao “poder hegemônico” vem antes de tudo.
Isso não é fomentar um mundo multipolar. Isso é fazer vista grossa às agressões de ditadores, sob o pretexto da “multipolaridade”.
Felizmente, não é preciso optar entre a idiotia de Bolsonaro e o antiamericanismo do PT. Haverá outras alternativas nas eleições.
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