É lícito asfixiar totalmente canais bolsonaristas?
No meu último artigo semanal para a Crusoé, ao comentar o fato de a Segunda Turma do STF ter jogado no lixo a ação penal aberta pela Lava Jato do Rio de Janeiro contra advogados acusados de desviar 151 milhões de reais da Fecomércio fluminense, para a suposta compra de sentenças -- alguns deles filhos de ministros do STJ e TCU --, mencionei a estranha situação de muitos cidadãos. A estranha situação é "de ter de defender o STF contra os ataques bolsonaristas às instituições democráticas -- e, ao mesmo tempo, horrorizar-se com a demolição promovida pelo STF de todas as tentativas de investigar gente poderosa...
No meu último artigo semanal para a Crusoé, ao comentar o fato de a Segunda Turma do STF ter jogado no lixo a ação penal aberta pela Lava Jato do Rio de Janeiro contra advogados acusados de desviar 151 milhões de reais da Fecomércio fluminense, para a suposta compra de sentenças — alguns deles filhos de ministros do STJ e TCU –, mencionei a estranha situação de muitos cidadãos. A estranha situação é “de ter de defender o STF contra os ataques bolsonaristas às instituições democráticas — e, ao mesmo tempo, horrorizar-se com a demolição promovida pelo STF de todas as tentativas de investigar gente poderosa. O que também é uma forma de minar a democracia. Tudo fica ainda mais complexo porque Jair Bolsonaro, em virtude dos seus desvarios, foi incluído no mesmo inquérito do fim do mundo que censurou a Crusoé e me levou para a frente de um delegado da PF. Ou seja, um inquérito que fere a democracia e o Estado de Direito, ao colocar o STF na posição de vítima, titular da ação penal e julgador — e que inspirou o presidente do STJ a acuar procuradores da Lava Jato –, agora serve para defender a democracia e o Estado de Direito”. A referência ao presidente do STJ, ministro Humberto Martins, é porque ele quer usar as mensagens roubadas do celular de Deltan Dallagnol, para atacar quem ousou investigar o seu filho e ele próprio.
Dias depois da publicação do artigo, o corregedor-geral do TSE, ministro Luis Felipe Salomão, determinou a suspensão da monetização de canais bolsonaristas em diversas redes sociais. O dinheiro obtido por anúncios veiculados nesses canais será transferido para uma conta judicial, enquanto durarem as investigações. As medidas cautelares foram pedidas por uma delegada da PF que está à frente do inquérito administrativo aberto pelo TSE, para apurar a disseminação de ataques e notícias falsas contra o sistema eleitoral brasileiro — a saber, sobre a ocorrência de fraudes nas urnas eletrônicas, afirmação desprovida de qualquer prova crível.
Na sua decisão, Luis Felipe Salomão, que já me acusou de atentar contra a liberdade de expressão, num processo em que processei um caluniador petista, sem pedir a exclusão das ofensas contra mim do seu blog, afirma o seguinte:
“Após explicar a forma de atuação desse grupo e o modelo de influência por ele adotado, a autoridade policial informa haver estudos demonstrando que a disseminação, nas redes sociais, de notícias falsas ou sem lastro, quanto a fraude nos sistemas de votação, corrói a confiança da população no processo eleitoral, que consubstancia uma das bases do Estado Democrático de Direito.”
Luis Felipe Salomão cita que a delegada aponta para dois tipos de canais:
“De um lado, os operados por pessoas físicas que, se autointitulando analistas políticos e de forma predominantemente não profissional, promovem seus conteúdos. De outra parte, há aqueles que ostentam estrutura semelhante a órgãos de imprensa, o que se constata pelo nome e formato dos programas, além do modo de confecção das matérias.”
E completa:
“De fato, na maior parte do conteúdo analisado, o que se constata não é a veiculação de críticas legítimas ou a proposição de soluções para aperfeiçoar o processo eleitoral – plenamente garantidas aos cidadãos e aos meios de comunicação –, mas sim o impulsionamento de denúncias e de notícias falsas acerca de fraudes no sistema eletrônico de votação, que, contudo, já foram exaustivamente refutadas diante de sua manifesta improcedência, inclusive pela própria Polícia Federal.”
De fato, vivemos uma estranha situação no Brasil, como disse no início deste artigo. Mas não podemos perder de vista alguns princípios, e isso está ocorrendo de todos os lados. Por mais nojentos que sejam os bolsonaristas, como provam inclusive as campanhas imundas promovidas por eles contra O Antagonista e a Crusoé, é preciso indagar se é lícito asfixiar financeiramente canais de expressão de cidadãos, antes de concluir o processo sobre se ferem ou não as leis vigentes no país. Enfatize-se que não se trata de concordar com o que esses canais veiculam sobre o sistema eleitoral brasileiro — discordo profundamente deles, embora não veja como heresia antidemocrática acrescentar o voto impresso ao sistema eletrônico, desde que a legislação seja muito clara e restritiva sobre a possibilidade de recontagens manuais. Trata-se aqui de preservar uma garantia constitucional.
Muitos desses canais fazem críticas estridentes a ministros do STF e adjacências, mas nada que configure crime — e não é delegado ou juiz que diferencia crítica legítima de ilegítima. Crítica estridente é bem diferente de ameaça à integridade física, o que é absolutamente condenável e deve ser reprimido com rigor. Espero, por exemplo, que o blogueiro Allan dos Santos pague por ter ameaçado o ministro Luís Roberto Barroso. Quem se sente ofendido por críticas estridentes tem como recorrer à Justiça, para acusar o crítico de calúnia, injúria ou difamação. A liberdade de expressão encontra o seu dique no direito penal. Asfixiar esses canais financeiramente, no entanto, soa excessivo neste momento. Parece, inclusive, uma forma de intimidar críticos que, por mais que esganiçados que sejam, atuam dentro dos limites da Constituição.
Menos questionável teria sido suspender a monetização apenas dos vídeos que divulgam notícias falsas para promover golpes. Se eles foram patrocinados com dinheiro oficial ou são resultado de sabotagem feita a partir de palácios e repartições públicas, aí o caso é gravíssimo e requer providências enérgicas. As investigações é que dirão. Quanto ao fato de gente que não é jornalista se passar por analista político ou adotar formatos de programas jornalísticos — bem, desde que foi a abolida a exigência de diploma de jornalista (decisão correta, a meu ver, porque a exigência era entulho autoritário da ditadura militar, que tentava esmagar a liberdade de expressão), não há nenhum impedimento legal para o que a delegada e o ministro do TSE veem como problema, até onde eu sei. Quem tem de separar o joio do trigo é o espectador, ouvinte ou leitor. E, aparentemente, eles sabem separar no que interessa, ao contrário do que mostram os “estudos” elencados pela delegada. Apesar de o golpista Jair Bolsonaro e os seus acólitos martelarem que as urnas eletrônicas são fraudulentas, uma pesquisa divulgada ontem pela XP mostra que 58% dos brasileiros são contra o voto impresso e apenas 36% são a favor. Ou seja, têm confiança no atual sistema eleitoral.
O momento é complicado, temos de cerrar fileiras contra quem ameaça a democracia, mas ela só existe também quando delegados de polícia e juízes não se arrogam o direito de ser editores da nação. Vivemos uma situação estranha, mas a manutenção de alguns princípios é que nos fará sair dela.
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