Civilidade, sim; cordialidade, não
Na semana passada, Lula e Tarcísio de Freitas fizeram foto juntos enquanto Sérgio Moro e Flávio Dino se abraçaram na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. Em outras latitudes, o fato de autoridades trocarem alguma gentileza ao se encontrarem num espaço neutro talvez não fosse digno de nota. Aqui, as duas imagens chamaram bastante atenção...
Na semana passada, Lula e Tarcísio de Freitas fizeram foto juntos enquanto Sérgio Moro e Flávio Dino se abraçaram na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado.
Em outras latitudes, o fato de autoridades trocarem alguma gentileza ao se encontrarem num espaço neutro talvez não fosse digno de nota. Aqui, as duas imagens chamaram bastante atenção – a meu ver, porque revelam nossas dificuldades com as ideias de civilidade e cordialidade na esfera política.
Faz quase cem anos que o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda desvendou o sentido profundo da cordialidade na vida pública dos brasileiros: ela é um meio de estendermos a lógica das relações privadas para além do nosso círculo familiar.
Jeitinho e conchavo são filhos diletos da cordialidade, assim como a conciliação. O seu avesso é a ordem pública impessoal e neutra.
O cidadão brasileiro desenvolveu diante dos políticos cordiais, que no fim acertam tudo entre eles, o mesmo instinto que os animais da África diante dos seres humanos: eles podem parecer inofensivos, mas são vistos como predadores.
Por isso, aliados de Sérgio Moro, como o ex-procurador e ex-deputado federal Deltan Dallagnol, reagiram com desconforto quando o viram trocar gentilezas com Flávio Dino.
As contas de campanha de Moro foram contestadas e seu mandato de senador está sob risco. Nessas circunstâncias, o abraço no ministro da Justiça do governo Lula, mais do que desnecessário, soou como um esforço para conquistar a simpatia de um futuro integrante do STF.
Deltan criticou Moro no X, sem citar seu nome: “Se você permite que o sistema te controle com dinheiro ou ameaças, você virou sistema.”
A civilidade é um fenômeno diferente da cordialidade. Sérgio Buarque de Holanda registrou isso de passagem: “Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo – ela pode exprimir-se em mandamentos e sentenças.”
Confesso que nunca havia parado para pensar na questão. Remediei um pouco a ignorância lendo o livro de uma jovem professora americana: Mere Civility (Mera Civilidade), de Teresa Bejan.
O livro foi publicado em 2017. Seu ponto de partida foi a percepção de que a vida pública nas democracias passava por uma “crise de civilidade”, convertendo-se num espetáculo contínuo de hostilidade e agressões.
As coisas pioraram de lá para cá. A crise se agudizou – e o que vale para os Estados Unidos, vale também para o Brasil. Os dois países parecem ter sucumbido à certeza de que a política se resume a um embate do tipo tudo ou nada entre “amigos” e “inimigos”.
Bejan chama atenção para dois aspectos da civilidade.
Tomada como sinônimo de polidez, de boas maneiras, de amenidade, ela pode servir para estigmatizar os “selvagens” – aqueles que não merecem se sentar à mesa porque não sabem segurar o garfo. Trata-se de uma maneira sutil de excluir certos grupos da conversação.
A autora propõe uma outra abordagem: tratar a civilidade como uma virtude análoga à tolerância. Segundo ela, a ideia de civilidade que merece ser retomada é a do século XVII: um remédio para as guerras de religião decorrentes da Reforma, que estilhaçou o cristianismo em diversas denominações.
Os pensadores do século XVII que passaram a falar em nome da civilidade e da tolerância não queriam sufocar as diferenças religiosas. Eles queriam definir condições mínimas de convivência em meio à discórdia.
O herói do livro de Bejan é o puritano Roger Williams, um dos fundadores da colônia de Rhode Island, nos Estados Unidos. Ele defendeu uma atitude de “mera civilidade” tanto nos seus encontros com outros crentes – anglicanos, quakers, católicos, os próprios puritanos – quanto nos contatos com “pagãos” – os nativos do continente americano.
Isso implicava engrossar a pele para suportar até mesmo as manifestações que lhe pareciam mais equivocadas e ofensivas, bem como adotar um estilo de comunicação direto, mas não raivoso, que lhe permitisse expressar suas discordâncias sem interromper a conversa.
A “mera civilidade” é uma virtude para quem precisa viver junto sem compartilhar crenças políticas, religiosas ou de qualquer outro tipo. Não serve para eliminar confrontos, mas para impedir que eles explodam.
Quem pratica a “mera civilidade” sabe que certas diferenças são irreconciliáveis. Além disso, não está interessado em tornar as disputas verbais absolutamente higiênicas e inocentes. Entende que alguns debates requerem doses de sarcasmo, contundência, até mesmo agressividade. Mas treinou-se para reconhecer o momento de parar.
O melhor exemplo de civilidade dos últimos tempos, no Brasil, veio do senador Alessandro Vieira (MDB-SE). Durante a sabatina de Flávio Dino, na quarta-feira, 13, ele explicou por que votaria contra a indicação ao STF. Foi duríssimo e não esboçou um sorriso sequer. Foi meramente civil.
O Brasil não precisa de políticos viciados em lacração – gente perpetuamente na ponta dos cascos, que não resiste a ofender os adversários de maneira gratuita.
Mas a troca da cordialidade pela mera civilidade também seria uma evolução bem vinda. A política dos acertos de bastidor já exauriu o país. Desde que as janelas do Congresso e o velho relógio de D. João VI continuem inteiros, melhor viver num mundo de desacordos. Ninguém quer outra conciliação das elites em Brasília.
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