As implicações da falsidade de atestados de óbito e outras condutas médicas na pandemia
Em artigo para O Antagonista, a ex-juíza federal Cecilia Mello e as advogadas Júlia Dias Jacintho e Marcella Halah Martins Abboud destacam a importância da fidedignidade do atestado de óbito durante a pandemia de Covid. A Prevent Senior, como foi revelado, omitiu...
Em artigo para O Antagonista, a ex-juíza federal Cecilia Mello e as advogadas Júlia Dias Jacintho e Marcella Halah Martins Abboud destacam a importância da fidedignidade do atestado de óbito durante a pandemia de Covid.
A Prevent Senior, como foi revelado, omitiu no atestado de óbito que o médico Anthony Wong e a mãe do empresário Luciano Hang morreram em decorrência de Covid.
Leia a íntegra do artigo:
“A Lei 6.015/1973 (Lei de Registro Público) exige para o registro de óbito o precedente atestado médico (art. 77) que deve indicar se a morte foi natural ou violenta e a causa conhecida (art. 80). Isto porque, tal como o nascimento e outros atos consideráveis da vida civil, a morte e como ela se deu trazem consequências relevantes na esfera de direito.
O médico que atesta o óbito tem responsabilidade ética e jurídica pela integralidade das informações prestadas na declaração de óbito. Especificamente no que diz respeito à morte causada por infecção do novo coronavírus, por se tratar de doença pandêmica contagiosa, o Ministério da Saúde atualizou a Portaria nº 204 para fazer constar a “Síndrome Respiratória Aguda Grave associada a Coronavírus: a. SARS-CoV; b. MERS- CoV”, como doença de notificação compulsória imediata.
Desta forma, o médico deve, obrigatoriamente, comunicar à autoridade sanitária local “em até 24 (vinte e quatro) horas, a partir do conhecimento da ocorrência de doença, agravo ou evento de saúde pública, pelo meio de comunicação mais rápido disponível”, sob pena de incorrer no delito de omissão de comunicação de doença (art. 269, Código Penal).
Nesse sentido, é obrigação legal desses profissionais registrarem as causas da morte, obedecendo ao disposto nas regras internacionais (Cadastro Internacional de Doença e Problemas Relacionados com a Saúde – CID), anotando o diagnóstico ou diagnósticos que levaram à morte ou contribuíram para esse desfecho, bem como o tempo aproximado entre o início da doença e o óbito.
A par desse documento refletir circunstâncias extremamente relevantes para o Direito, a declaração de óbito é o documento-base do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde. As intercorrências de saúde de cada cidadão são orientadas pelo CID e acarretam consequências diretas à administração pública e sanitária. Dentre outras finalidades, os dados relativos aos óbitos são utilizados para o conhecimento da situação de saúde da população em geral, de maneira a gerar ações para a sua melhoria. Portanto, devem refletir estritamente a realidade, sob pena de comprometerem providências futuras.
Se em tempos normais a fidedignidade dessas informações já é relevante, em período de pandemia essa importância sobressai ainda mais. São esses dados que deverão alimentar as políticas públicas de saúde a serem implementadas, as quais, em momento pandêmico, tendem a ter, inclusive, características emergenciais. Essas estatísticas de mortalidade são levantadas a partir de declarações de óbito lastreadas em informações médicas.
O art. 302 do Código Penal tipifica o crime de falsidade de atestado médico, com pena de detenção de um mês a um ano. No caso específico, entende-se que a reprimenda é bastante branda quando se tem em mira a saúde pública e os reflexos que essa falsidade pode implicar em termos de políticas e medidas que deveriam ter sido adotadas em tempos de pandemia.
Para além deste delito, o direito penal tutela a saúde pública (incolumidade pública) coibindo condutas como a de fornecer medicamentos com a existência de substância que não se encontra declarada em seu conteúdo (art. 275 e 276), como também a promoção de cura à determinada doença por meio secreto ou infalível (art. 283).
Ressalta-se, ainda, a circunstância agravante disposta no Código Penal (art. 61, inciso j), que pode ensejar aumento da pena, quando o agente se vale da situação de “calamidade pública” para a prática do delito, o que torna a conduta mais reprovável.
Sob outro prisma, o Código de Ética Médica prevê como infração a divulgação: (i) de assunto médico, por qualquer meio de comunicação de massa, sem caráter exclusivamente educacional (art. 111); (ii) de informações médicas de forma sensacionalista (art. 112); e, (iii) fora dos meios científicos, de tratamento cujo valor não esteja reconhecido cientificamente por órgão competente (art. 113).
Promover efusivamente tratamento não reconhecido pela literatura médica e manejá-lo sem o consentimento do paciente ou seu familiar caracteriza falta grave a ensejar a suspensão do exercício profissional, assim como, constituir conduta penalmente relevante.
As condutas ora abordadas geram repercussões graves e, se efetivamente comprovadas, podem ocasionar, além da responsabilização perante os respectivos Conselhos Regionais de Medicina, a responsabilização penal, pelos delitos praticados, e a civil, por danos eventualmente causados.
Dessa forma, diante do contexto pandêmico que nos assola, informações reais sobre óbitos, devidamente notificadas às autoridades competentes, poderiam ter propiciado o desenvolvimento de políticas públicas de saúde mais adequadas e efetivas, embora não pudéssemos esperar realidade diversa diante de notórias omissões e tamanho desgoverno.”
Cecilia Mello foi juíza federal por 14 anos no TRF-3. Júlia Dias Jacintho e Marcella Halah Martins Abboud são associadas do escritório Cecilia Mello Advogados.
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