Ilha cercada de mortes (2)
A segunda parte da reportagem feita por mim (Mario) para a revista Veja, em 2013:Lampedusa conservou-se, em breves linhas, foi na literatura - e não se está falando de Tomasi di Lampedusa, autor de O Leopardo, cuja família nobre foi proprietária da ilha. O escritor jamais pisou no lugar que lhe deu sobrenome ou dedicou um parágrafo sequer a cenário tão longínquo. Quem o fez foi Ludovico Ariosto, no século XVI, em Orlando Furioso. Porque ali, no fim da Idade Média, se travaram batalhas entre cristãos e muçulmanos, que inspiraram versos ao autor clássico, nascido no centro da Bota italiana. Um deles a descreve desta forma, em tradução livre..."A ilhota é vazia, plena de alegre solidão"
A segunda parte da reportagem feita por mim (Mario) para a revista Veja, em 2013: Lampedusa conservou-se, em breves linhas, foi na literatura – e não se está falando de Tomasi di Lampedusa, autor de O Leopardo, cuja família nobre foi proprietária da ilha. O escritor jamais pisou no lugar que lhe deu sobrenome ou dedicou um parágrafo sequer a cenário tão longínquo. Quem o fez foi Ludovico Ariosto, no século XVI, em Orlando Furioso. Porque ali, no fim da Idade Média, se travaram batalhas entre cristãos e muçulmanos, que inspiraram versos ao autor clássico, nascido no centro da Bota italiana. Um deles a descreve desta forma, em tradução livre: “De habitações, a ilhota é vazia, plena de humildes murtas e zimbros, alegre solidão e remota a cervos, a veados, cabras e lebres; e afora aos pescadores é pouco conhecida”. A ilhota de Ariosto permaneceu terra de pescadores, com uma base militar americana instalada no pós-guerra, a Segunda, até 1986, quando entrou para o noticiário internacional ao virar alvo de dois mísseis Scud lançados pelo regime do líbio Muamar Kadafi. Os mísseis caíram no mar, sem ferir ninguém, mas tiveram um efeito paradoxal: o lugar virou destino turístico. Barato, mas lucrativo o bastante para que pescadores transformassem suas casas em pequenos hotéis, e fossem construídos outros tantos. Esqueça qualquer comparação com Capri ou Sardenha. Digamos que, como donos de hotel, os lampedusanos continuam ótimos pescadores. Encantado com a Praia da Ilha dos Coelhos, o cantor Domenico Modugno, o Mister Volare, morreu nesse recanto, em 1994, não num hotel lampedusano, mas numa casa de pedra, hoje ruína em meio à reserva ambiental que cerca “a mais bela praia do mundo”, segundo o texto dos guias. “Os jornais divulgaram que o acidente de 3 de outubro ocorreu na Praia da Ilha dos Coelhos, mas não é verdade. Foi a 3 quilômetros, só um corpo apareceu aqui, trazido pela correnteza. O problema é que isso vai afugentar os turistas ainda mais”, lamenta Vincenzo, motorista de um dos dois ônibus existentes, antes de deixar o único passageiro em frente à praia que, se não é a mais bela do mundo, estaria no páreo de uma competição do gênero. É compreensível que turistas temam menos a pontaria de mísseis disparados por líbios do que cadáveres de imigrantes boiando ao seu lado. Desde 2011, quando o número de refugiados no Centro de Acolhida, com 250 leitos, superou o total da população, Lampedusa vem perdendo receita turística e não sai das páginas internacionais como exemplo de ignomínia. O ano da Primavera Árabe foi um terror para os ilhéus italianos. Revoltados com as condições do centro e informados de que compatriotas seus haviam sido mandados de volta para a Tunísia, imigrantes daquele país promoveram uma arruaça no centro e na Via Roma, com o beneplácito do então governo de direita italiano, interessado em mostrar aos países da União Europeia como a situação estava insuportável – e como seria bom trancar melhor a Fortaleza Europa. Os locais, é claro, reagiram à baderna e, desse modo, ganharam a pecha de xenófobos. “Trata-se de uma injustiça”, diz Angela Sorrentino, voluntária da Caritas, o musculoso braço de assistência humanitária da Igreja Católica. “Sempre fomos receptivos aos necessitados.” De fato, Lampedusa é terra de tolerância. No século XIII, viajantes contavam que existia uma gruta na localidade de Cala Madonna (“cala” significa “pequena baía”) onde vivia um eremita que a dividiu em duas partes, para abrigar tanto cristãos quanto muçulmanos. Do lado cristão, havia uma cruz; do lado muçulmano, uma meia lua. Na década de 90, começaram a chegar os primeiros refugiados da África islâmica, mesmerizados pelas imagens televisivas do capitalismo italiano captadas por antenas em seus países. Muitos recebiam abrigo nas casas dos habitantes, antes de seguir viagem para a Sicília e, daí, para a Europa. O maremoto causado pela Primavera Árabe mudou tudo. Quando esteve em Lampedusa, em julho, na sua primeira viagem apostólica, para chamar a atenção dos poderosos do mundo para o que sucede nessa parte do Mediterrâneo, antes portanto dos naufrágios de outubro, o papa Francisco lançou um alerta contra o que chamou de “globalização da indiferença”. Os lampedusanos sentiram-se incluídos na massa dos ignorados. Na área deporto onde o papa rezou uma missa campal, ao lado da qual ainda resta um cemitério de barcos de imigrantes, uma faixa em italiano dá conta do sentimento reinante: “Não nos sentimos italianos”. É uma ilha, como já se disse, que exibe precariedades e está distante dos padrões de vida até mesmo da Sicília. E o afluxo de imigrantes só fez evidenciar esse contraste. Infraestrutura precária, escassas ligações marítimas e aéreas com a Itália, escolas deficientes e hospitais incapazesde fazer partos com segurança (os lampedusanos costumam nascer na siciliana Agrigento) – tal é a porta de entrada da Europa. “A nossa esperança é que a urgência humanitária também lance luz sobre as nossas condições”, diz o vice-prefeito, Damiano Sferlazzo, que divide o seu dia como pesquisador da estação meteorológica que faz parte de uma rede mundial que avalia as mudanças climáticas ao redor do planeta. “A ilhota é vazia, plena de alegre solidão” |
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