A Tênue Linha da Morte A Tênue Linha da Morte
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A Tênue Linha da Morte

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Josias Teófilo
6 minutos de leitura 20.11.2022 11:43 comentários
Cultura

A Tênue Linha da Morte

A HBO Max Brasil anunciou a estreia de uma série de documentário sobre a ex-deputada Flordelis, condenada por matar o marido. Será a segunda sobre o tema produzida por um streaming brasileiro. A primeira foi feita pela Globoplay e tem sido lançada em episódios semanais. Não é a primeira vez que isso acontece: os crimes de João de Deus foram retratados numa série da Globoplay e, depois, em outra da Netflix. O crime se tornou o grande tema do streaming no nosso país. Além dos citados, a série sobre o assassinato de Daniella Perez, também da HBO Max Brasil, esteve entre as mais assistidas internacionalmente na plataforma. As histórias de Elize Matsunaga, Marielle Franco e do caso Evandro se somam às produções realizadas no país...

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Josias Teófilo
6 minutos de leitura 20.11.2022 11:43 comentários 0
A Tênue Linha da Morte
Brunno Dantas/TJRJ

A HBO Max Brasil anunciou a estreia de uma série de documentário sobre a ex-deputada Flordelis, condenada por matar o marido. Será a segunda sobre o tema produzida por um streaming brasileiro. A primeira foi feita pela Globoplay e tem sido lançada em episódios semanais. Não é a primeira vez que isso acontece: os crimes de João de Deus foram retratados numa série da Globoplay e, depois, em outra da Netflix. O crime se tornou o grande tema do streaming no nosso país. Além dos citados, a série sobre o assassinato de Daniella Perez, também da HBO Max Brasil, esteve entre as mais assistidas internacionalmente na plataforma. As histórias de Elize Matsunaga, Marielle Franco e do caso Evandro se somam às produções realizadas no país.

O gênero true crime não é novo e tem um brilhante antecedente no cinema de documentário: o filme A Tênue Linha da Morte, do ex-detetive Errol Morris, de 1988. O histórico de detetive foi fundamental para o diretor na realização da obra. Tratou de investigar o assassinato de um policial, em Dallas, em 1976, e a condenação do acusado Randall Adams à pena capital. Enquanto Adams estava no corredor da morte, Morris realizou o documentário, no qual o crime é encenado através das várias versões contadas pelos envolvidos e testemunhas. Ficou evidente que não haviam provas suficientes para condená-lo à morte. A repercussão da obra resultou na revisão do julgamento e Adams não foi mais executado, apesar de ter permanecido preso até seu falecimento em 2010.

A Tênue Linha da Morte é um dos filmes com efeito prático mais inequívoco da história do cinema, mas não é só por isso que ele é relevante. A linguagem do filme, sintética, com a reconstituição das versões inteiramente baseada em detalhes (uma mão que atira, o pormenor de um carro, etc.), com trilha sonora original composta por Phillip Glass, foi muito influente. O programa Linha Direta, que esteve no ar na Globo nas décadas de 1990 e 2000, foi inspirado no filme. Recentemente, a emissora anunciou que o programa vai voltar ao ar, apresentado por Pedro Bial.

Bial, aliás, foi o autor da série sobre João de Deus, uma das mais impressionantes dessa onda de true crime no streaming brasileiro. Ironicamente, foi a partir de uma entrevista não realizada com o “médium” que os crimes vieram à tona. O jornalista faria uma entrevista com ele, mas, no dia anterior, desistiu por não se sentir confortável. Nesse contexto, uma das vítimas ligou para o programa e fez a primeira denúncia. O que mais choca nessa série é o material de arquivo, especialmente as reportagens antigas, muitas com tom laudatório – não se desconfiava dos crimes que João de Deus estava cometendo. Ao mesmo tempo, vão surgindo relatos das suas vítimas, dos casos menos graves até os piores – ele abusou até da própria filha, e a chantageava para seguir abusando-a. Os seis episódios da série, especialmente se vistos em sequência, podem produzir no espectador um estado quase depressivo. 

Efeito semelhante causa a série Pacto Brutal – o assassinato de Daniella Perez. O uso de imagens de arquivo torna o espectador quase íntimo da vítima. Uma atriz jovem e linda, com uma vida idílica, morando no Rio de Janeiro, e atuando numa novela que era a mais vista no país. A trama macabra da história, com a morte ritual realizada por Guilherme de Pádua e a esposa no último dia da Lua cheia, e as várias tentativas de violar o túmulo da atriz, são quase inacreditáveis. Comovente de igual modo é Escola Base – um repórter enfrenta o passado, documentário da Globoplay sobre um dos erros mais famosos do jornalismo brasileiro: a acusação falsa de pedofilia contra os donos da escola primária em São Paulo. Nesse caso, não há nenhum assassinato ou estuprador em série, mas nem por isso a história é menos dramática. A “fake news” destruiu a vida dos acusados, que, mesmo inocentados e indenizados, nunca mais se recuperaram. O fato marcou para sempre também o jornalista Valmir Salaro, da Rede Globo, o primeiro a cobrir o caso e que traz para si a responsabilidade pelo erro de apuração. Apesar de ter ocorrido na década de 1990, o episódio serve à reflexão em tempos de desinformação massiva.

Tecnicamente falando, em comum entre os documentários citados está o uso de imagem de arquivo, especialmente em VHS, cuja qualidade estética (inclusive com seus defeitos, instabilidades na imagem e na cor) se tornou uma marca registrada dessas séries, assim como o uso imagético dos arquivos: documentos, cartas, fotografias antigas. Interessante que essas obras se popularizaram muito durante a pandemia, quando as pessoas estavam em casa – muitas delas tiveram tempo de acessar seus próprios arquivos. Tiger King (sobre os excêntricos criadores de tigres nos Estados Unidos, o principal deles terminando preso por assassinato), da Netflix, é talvez o exemplo recente mais bem sucedido desse modelo. Com mais de 5 bilhões de visualizações durante a pandemia, a série traz planos simétricos nas entrevistas e abusa das imagens em VHS para ilustrar cada fala dos entrevistados, envolvendo o espectador numa trilha sonora minimalista, que remete à que Phillip Glass compôs para o filme de Errol Morris. Não há narração, como nos documentários tradicionais, o que demonstra uma tentativa de fazer os fatos falarem por si. O sucesso de séries de true crime é motivado pelo mesmo interesse humano que impele o espectador a ver uma Tragédia Grega ou a uma peça de Shakespeare: é o extremo do comportamento humano, o que nós temos de pior. E a linguagem do documentário pode expressar isso tão bem quanto a ficção.

*Josias Teófilo é cineasta, jornalista, escritor e fotógrafo brasileiro.

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