Rodolfo Borges na Crusoé: O estrangeiro Abel Ferreira
O treinador português captou e se apropriou tão bem da faceta bélica do Palmeiras que parece nunca ter conseguido se sentir em casa no Brasil
Em sua coluna semanal para Crusoé, Rodolfo Borges traz nesta edição uma análise sobre o técnico do Palmeiras, Abel Ferreira, que nesta semana foi grosseiro com uma repórter que lhe fez uma pergunta simples, nada pessoal.
Melhor seria ter usado “O homem revoltado” no título de um texto para falar sobre Abel Ferreira, mas “O estrangeiro” foi tentador demais, para dizer o que precisa ser dito, e é tudo Albert Camus de qualquer forma. O treinador português tinha acabado de liderar seu Palmeiras em um impetuoso 5 a 0 sobre o Criciúma pelo Campeonato Brasileiro, e conseguiu esconder o triunfo atrás de protestos contra seu machismo.
Não é a primeira vez que Abel é grosseiro em entrevistas coletivas, e é difícil imaginar que será a última. O técnico português se acostumou a ganhar no Brasil. É o atual bicampeão brasileiro, foi bicampeão da Libertadores da América e ganhou uma Copa do Brasil, entre outros títulos menos expressivos. Mas amargou, antes de descontar a raiva em gols no Criciúma, duas dolorosas eliminações para Flamengo e Botafogo, na Copa do Brasil e na Libertadores, respectivamente.
“A revolta nasce do espetáculo da desrazão diante de uma condição injusta e incompreensível. Mas seu ímpeto cego reivindica a ordem no meio do caos e a unidade no próprio seio daquilo que foge e desaparece. A revolta clama, ela exige, ela quer que o escândalo termine e que se fixe finalmente aquilo que até então se escrevia sem trégua sobre o mar”, diz Camus em O homem revoltado (Record).
É como se o franco-argelino estivesse falando do próprio Palmeiras, porque essa revolta precede Abel. Há algo de ressentido no torcedor palmeirense, uma desconfiança em relação a tudo e todos que só tinha se manifestado de forma tão intensa nas passagens de Felipão pelo clube. Abel e sua comissão técnica elevaram esse sentimento a outro nível.
Já destaquei nesta mesma revista, em É preciso saber perder, a declaração do auxiliar técnico João Martins, que, ao comandar o Palmeiras em empate contra o Athletico Paranaense em 2023 — porque Abel estava suspenso —, insinuou que o clube era vítima de um complô: “É ruim para o sistema o Palmeiras ganhar dois anos seguidos”. E os palmeirenses gostaram de ouvi-lo, assim como apreciam a forma como Abel mobiliza seu time.
Minha impressão é de que esse sentimento tem a ver com a forma como o clube conquistou suas grandes vitórias recentes, que dependeram de patrocinadores que competem em atenção com o time, como a Parmalat e a Crefisa — esta última, empresa da presidente do clube, é usada pelos adversários para nomear pejorativamente o próprio Palmeiras, como se a financeira já tivesse se tornado maior do que o clube.
A isso se mistura o fato de que as glórias mais antigas do Palmeiras ficaram tão distantes que não encontram eco nos padrões atuais, como o alegado mundial de 1951. É bobagem, mas tudo isso parece ter contribuído para desenvolver um ambiente raivoso na torcida palmeirense, e Abel o captou e se apropriou dele muito bem. Esse sentimento faz parte de sua gestão vitoriosa no Palmeiras, mas nunca permitiu que ele se sentisse em casa no Brasil.
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