O direito de saber se sobrepõe ao do esquecimento
O STF julgará a partir de hoje, se não houver interrupção, um tema fundamental para a manutenção da liberdade de imprensa: o que vem sendo chamado de "direito ao esquecimento". O julgamento foi motivado por uma ação movida por familiares de Aída Cury, abusada e assassinada em 1958, quando contava apenas 18 anos, num crime que chocou o país e virou tema de um programa da Rede Globo, meio século depois (o Linha Direta)...
O STF julgará a partir de hoje, se não houver interrupção, um tema fundamental para a manutenção da liberdade de expressão e imprensa: o que vem sendo chamado de “direito ao esquecimento”. O julgamento foi motivado por uma ação movida por familiares de Aída Cury, violentada e assassinada em 1958, num crime que chocou o país e virou tema de um programa da Rede Globo, meio século depois (o Linha Direta). Os irmãos de Aída Cury não gostaram de ver o crime relembrado em rede nacional e pediram indenização à emissora. Perderam em todas as instâncias e o caso foi parar no Supremo.
As implicações de uma decisão que chancele o “direito ao esquecimento” podem criar sérios entraves à liberdade de imprensa porque suspeitos de quaisquer crimes investigados pela polícia ou descobertos por repórteres investigativos, bem como criminosos que já receberam veredicto, encontrarão nesse entendimento uma forma de evitar que os seus nomes sejam citados em reportagens e uma brecha para que eles venham a ser cancelados em sites de busca — aliás, isso já vem ocorrendo isoladamente, por ordem de juízes de primeira instância. No limite, reivindicarão que os seus nomes sejam apagados até mesmo dos arquivos dos veículos de comunicação. No limite, igualmente, o jornalismo investigativo, nos seus diferentes campos, será inviabilizado por editores temerosos de processos de todo tipo.
O relator da ação que chegou ao Supremo é Dias Toffoli. Curiosamente, em 2009, ano em que foi empossado ministro, almocei com ele em São Paulo, na qualidade de redator-chefe da revista Veja. Abordamos assuntos gerais, como geralmente ocorre nesses encontros protocolares entre autoridades e diretores de jornal. Um deles foi o caso de uma condenada por fraudes na Previdência. A senhora cumprira a pena e refizera a vida. Estava, portanto, quite com a Justiça. Jamais havia contado à filha que viria a ter anos depois sobre o delito cometido e a pena que lhe fora imposta. No entanto, a filha descobrira tudo por meio do arquivo digital da Veja, recentemente lançado. A senhora, então, resolveu exigir na Justiça que a reportagem de anos atrás fosse retirada do ar.
Expressei a Toffoli a minha preocupação com as eventuais repercussões de uma decisão favorável à senhora. Afirmei que cancelar a notícia no arquivo digital equivaleria a entrar numa hemeroteca com a coleção da Veja e rasgar as páginas com a notícia. Não era questão de comparar o alcance do digital em relação ao do papel, mas de validar ou não um ato de censura, o que feria a Constituição.
Não sei, obviamente, qual será o voto de Toffoli no julgamento de hoje, mas ele me forneceu naquela ocasião um argumento para que a reportagem sobre a fraudadora fosse mantida no ar. “A filha dela tem o direito de saber sobre a sua própria mãe, e esse direito se sobrepõe ao do esquecimento”, disse ele. Achei o raciocínio fantástico. Saí do almoço com boa impressão do então novo ministro do Supremo. Uma década mais tarde, quem tentou cancelar notícia foi ele. Pois é.
É disso que se trata: do direito de os cidadãos saberem. O nome disso é história. O jornalismo é apenas o primeiro rascunho da história (a definição é de um editor americano) e, como tal, também faz parte dela, seja nos seus acertos como nos seus erros. Um erro histórico dos jornais brasileiros foi o das reportagens sobre a Escola Base, na década de 1990. Repórteres e editores compraram a versão de um delegado de que crianças eram abusadas pelos donos do estabelecimento e eles se viram jogados no inferno. É um erro que merece ser eternizado como alerta para nós, jornalistas, e não cancelado.
Pegue-se agora um acerto que envolve a imprensa nas duas pontas: o do assassinato da repórter Sandra Gomide, em 2000, pelo então diretor de redação do Estadão, Antônio Pimenta Neves. O crime foi amplamente noticiado, sem nenhum corporativismo da parte dos jornais. O assassino terá o direito de solicitar que os registros sobre a sua abominação sejam apagados? No paralelo direto com o processo dos irmãos de Aída Cury, a família de Sandra Gomide poderá impedir que se reconte a execução covarde sofrida por sua filha?
Manter viva a memória de crimes — e, no caso, está-se falando do que passou a ser chamado de feminicídio — é preservar no longo prazo parte importante da história do cotidiano, dos usos e costumes de um povo, da sua evolução ou involução, do funcionamento ou disfuncionalidade das suas instituições. No curto prazo, é acender o farol da vigilância e fazer profilaxia. O sensacionalismo indevido em torno de um crime de sangue não é defensável, claro. Mas não é disso que trata ou deveria tratar o julgamento no STF sobre o “direito ao esquecimento”. É de liberdade de expressão e imprensa que se está falando, do direito de os cidadãos serem informados e lembrados, da impossibilidade de a verdade ser tutelada, por mais doloroso que isso possa ser para indivíduos que se sentem condenados a uma “pena perpétua” por terem entrado no noticiário (a vedação da “pena perpétua” é a justificativa para o “direito ao esquecimento”). O interesse público deve prevalecer.
Não apaguem a história ou o esboço dela, o jornalismo. Inclusive porque só vai piorar a tendência nacional de esquecer a cada 15 anos o que aconteceu nos últimos 15, como disse Ivan Lessa.
Os comentários não representam a opinião do site; a responsabilidade pelo conteúdo postado é do autor da mensagem.
Comentários (0)