Jerônimo Teixeira na Crusoé: Uma defesa parcial do blackface
O esquete em que Fernanda Torres apareceu pintada de preto tem mesmo um fundo de preconceito, mas isso não justifica o cancelamento da atriz

Não foi um blackface, mas um blackbody. Fernanda Torres estava toda pintada de preto no esquete do Fantástico.
Estou me adiantando: antes de falar desse pequeno escândalo que abala o cinema nacional, quero esclarecer o que penso sobre o blackface.
Aguente firme, leitor, pois farei um desvio para chegar lá. Vou começar pelo buraco.
Orifício polêmico
O buraco de que falo é aquele que, reza a lenda, foi confundido com uma boca quando apareceu em uma capa de disco de Tom Zé.
Há uns seis ou sete anos, em um grupo de WhatsApp de que eu participava, alguém compartilhou uma notícia de jornal sobre um filme ou documentário dedicado ao tão aviltado orifício.
A palavra de ordem da história era “sexo anal contra o capital” (pois as fábricas de lubrificante íntimo são todas cooperativas operárias que vendem seu produto com mais-valia zero, a preço de custo).
No grupo, todo mundo levou a coisa na galhofa, até um chato dizer que um filme em que o orifício aparecesse em cena não seria necessariamente ruim.
Instaurou-se uma longa discussão. Um dos participantes do grupo argumentou que uma cena dessas seria degradante, e que a arte não pode ser feita sobre a degradação do corpo humano.
O chato insistia: na avaliação de uma obra de arte, não se pode excluir nada a priori. Dependendo da concepção do artista, qualquer elemento tido como feio, sujo e imoral pode ganhar novos sentidos.
Eis aí Salò, de Pasolini: um grande filme sobre o fascismo com cenas brutais de tortura e coprofagia.
O chato, claro, era eu.
Sou obstinado na chatice: sustento que o mesmo argumento que usei para o buraco vale para o blackface.
Tinta do racismo
A história desse tipo de maquiagem no showbiz americano é inequivocamente racista. Isso não significa que ele esteja condenado a ser para sempre uma expressão de racismo.
Um filme histórico sobre a discriminação no cinema e no teatro em que um ator branco aparecesse em cena com tinta preta na cara não seria racista, certo?
(Laurence Olivier usou blackface para fazer Otelo no cinema. Me vem daí uma proposta mais radical: uma montagem de Otelo em que todo elenco seria de negros com o rosto pintado de branco – com exceção do próprio Otelo, que seria um branco com o rosto pintado de preto. Ou o inverso. Ou ainda: Otelo é um branco de blackface e Iago um negro de whiteface.)
Esqueçam meu Otelo de vanguarda. O tabu que se criou em torno do blackface é de tal maneira poderoso que talvez nem o convencional filme histórico seria possível hoje.
Na comédia Trovão Tropical, porém, Robert Downey Jr. pôde interpretar, com blackface, um ator branco que tentava fazer o papel de um soldado negro.
O filme é de 2008, mesmo ano em que Fernanda Torres apareceu no Fantático toda pintada de preto e com peruca afro desgrenhada.
Black Towers
Para quem eventualmente está por fora da história: um recorte de um esquete cômico da black Fernanda (foto) emergiu nas redes recentemente. Há especulações de que tenha sido ressuscitado por rivais da atriz brasileira na disputa pelo Oscar.
Fernanda emitiu o indefectível pedido de desculpas. Acho que repercussão esfriou, mas isso é difícil de avaliar.
Quando ouvi falar do caso, pensei de imediato que era mais um surto de histeria progressista tipicamente americana (e hollywoodiana). Estava me preparando para defender o blackbody da atriz de Ainda Estou Aqui.
Mas então eu vi o esquete.
O problema não está na pintura corporal por si só: Fernanda encarnou ali um estereótipo de empregada doméstica que está carregado de preconceitos sociais e raciais. A personagem até fala de um jeito meio embrutecido.
Fernanda Torres é uma excelente comediante, mas aquilo nem foi engraçado.
A sensibilidade atual já não aceita esse tipo de humor. E eu até acho bom que seja assim, desde que as preferências da tal sensibilidade não se imponham pela coação grupal ou por força judicial.
Só não acho que se possa apontar para um momento esquecido de uma longa e brilhante carreira para condenar ou “cancelar” uma artista. Quando isso acontece, entra em ação o “êxtase da santimônia” de que o presciente Philip Roth falou em A Marca Humana, romance publicado em 2000.
Desta vez, não foi só a turma woke que viajou nesse êxtase.
O realismo bolsonarista
Imagine as reações que veríamos nas redes se um dia emergisse um clipe antigo de Mário Frias, ex-ator e ex-ministro da Cultura do governo Bolsonaro, no mesmo figurino de Fernanda no Fantástico: uniforme de empregada doméstica e blackface.
(Não, Malhação nunca fez nada de tão ousado. Estou só construindo um cenário hipotético.)
A esquerda acusaria o hoje deputado federal de racismo e transfobia. Erika Hilton tentaria abrir processo contra ele na Comissão de Ética. E a direita bolsonarista, embora um tanto chocada com o figurino drag, invocaria o princípio da liberdade de expressão para defender Frias. Se ele quiser pintar a cara de preto, é seu direito!
Concordo: seria direito dele. Pelo que pude aferir em meus passeios pelo X, porém, não há muitos bolsonaristas defendendo o direito de Fernanda Torres fazer blackface em 2008. Os patriotas estão celebrando o que percebem como um percalço na campanha da atriz brasileira pelo Oscar.
Os comentários, na média, vão mais ou menos nessa linha: “essa esquerdista está provando do próprio remédio amargo. Bem feito pra ela!”. E assim a maior força eleitoral da direita brasileira embarcou em uma campanha de cancelamento, que costumava ser coisa de esquerda…
Essa direita também confirma sua natureza antidemocrática. Pois a origem de toda a bronca com o filme de Walter Salles Jr. está na exposição de um crime cometido pela ditadura militar que o bolsonarismo deseja ver apagado.
Rubens Paiva foi morto pela repressão, mas, pelo jeito, aceitar esse fato transforma o espectador em comunista.
O próprio Mário Frias outro dia…
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