Jerônimo Teixeira na Crusoé: A América entre a luz e a espada
Em um livro inacabado, um filme premiado e uma publicação de rede social, três imagens peculiares dos Estados Unidos

Kafka viajou pouco. De acordo com o biógrafo Reiner Stauch, em toda sua vida, o escritor tcheco passou cerca de 45 dias no exterior, descontadas estadias muito breves no Império Alemão.
O autor de O Processo morreu em 1924, de tuberculose, aos 39 anos, em um sanatório perto de Viena, sem nunca ter pisado fora da Europa.
Ainda assim, Kafka se deixou fascinar pelos Estados Unidos. Desde a adolescência, relata Stauch, ele pensava em escrever um livro que se passasse no país.
Em 1911, Kafka começou a trabalhar nessa ficção americana. Não gostou do resultado e abortou o projeto.
Recomeçou do zero no ano seguinte. Em março, registrou em seu diário o início de “um trabalho mais extenso”.
“Enquanto puder, não vou abandoná-lo”, prometeu a si mesmo.
Não chegou a cumprir a promessa.
O Desaparecido, romance sobre as desventuras de Karl Rossmann, rapaz de 17 anos que a família mandou para os Estados Unidos porque ele teve um filho com a criada, ficou inacabado.
Embora tenha escrito vários capítulos, Kafka publicou apenas o primeiro deles, como um livro autônomo – O Foguista, de 1913.
Max Brod, organizador da obra póstuma de Kafka, reuniu O Foguista aos capítulos inéditos para lançar o livro inconcluso em 1927.
Só não respeitou o título que o amigo escritor havia planejado.
Brod chamou o livro de América.
A liberdade iluminando o mundo
A narrativa começa com Karl Rossmann chegando, de barco, a Nova York. A Estátua da Liberdade, que saudava a chegada de milhões de imigrantes ao tempo em que Kafka esboçava O Desaparecido, aparece no primeiro parágrafo:
“A Estátua da Liberdade, que ele [Rossmann] vinha observando fazia muito tempo, pareceu-lhe iluminada pela luz de um sol que de repente se tornava mais forte. O braço com a espada sobressaía como se tivesse acabado de se levantar e em torno de sua figura sopravam os ares livres”.
Aparentemente, Kafka cometeu um erro nessa passagem. No braço direito erguido ao céu, Lady Liberty na verdade segura uma tocha.
Em Kafka: os Anos Decisivos, Reiner Stauch argumenta que não houve lapso. Kafka teria conscientemente substituído a tocha pela espada – um prenúncio do julgamento arbitrário a que Karl Rossmann seria submetido antes mesmo de desembarcar, na sala do capitão do barco.
(No universo kafkiano, tribunais brotam nos lugares mais inusitados.)
Tenha surgido na mão da estátua por equívoco ou deliberação do autor, é certo que a espada não é uma alusão ao caráter belicista que tantos atribuem à nação americana.
É quase inevitável, porém, que essa interpretação hoje cruze a mente dos leitores de O Desaparecido – mesmo daqueles que, como eu, nutrem certa simpatia pelos Estados Unidos.
Duas estátuas, dois países
As duas imagens do marco turístico nova-iorquino — a estátua original do escultor francês Frédéric Auguste Bartholdi e a estátua imaginária do escritor tcheco Franz Kafka — servem para representar dois clichês correntes sobre os Estados Unidos, mantidos por tribos políticas opostas.
A estátua da tocha é o país que criou…
Siga a leitura em Crusoé. Assine e apoie o jornalismo independente.
Os comentários não representam a opinião do site; a responsabilidade pelo conteúdo postado é do autor da mensagem.
Comentários (0)