Gustavo Nogy na Crusoé: Vai que me contam umas piadas e eu acabo rindo
Em uma época tão literal como a nossa, obras artísticas correm o risco de serem vistas como apologia ao crime

Se publicado hoje, e não em 1789, o panfleto Uma Modesta Proposta não seria entendido como uma sátira de péssimo gosto à fome que devorava a Irlanda de seu tempo, mas como um óbvio convite ao canibalismo infantil, e seu autor, Jonathan Swift, teria de enfrentar os rigores da lei, o que, a propósito, estaria de acordo com a Constituição cidadã de 1988, que nos proíbe de comer nossos filhos e os dos outros, entenda-se lá como se quiser entender o sentido do referido verbo no modo infinitivo.
Já um erudito alemão, supostamente amigável, mas interessados em cores e pactos suspeitos, responderia a processos penais e sabe-se lá outros quais por incitar, como incitou, o suicídio de jovens românticos que leram e se perderam em sofrimentos com os Sofrimentos do Jovem Werther – porque, como se sabe, e Johann Wolfgang von Goethe deveria saber, isso não se faz.
A respeito de Donatien Alphonse François de Sade – para os cúmplices, o Marquês de Sade – não se discute, se constata: suas indecorosas narrativas só não são mais ofensivas que a versão que o cineasta Pier Paolo Pasolini fez de Os 120 Dias de Sodoma, amontoado de poucas e muitas vergonhas, e nada mais do que isso.
Ainda no cinema, consideremos que José Sarney, sempre à frente do seu tempo, fez bem e fez muitíssimo bem em proibir que Je Vous Salue Marie, de Jean-Luc Godard, fosse exibido no Brasil, em respeito ao sentimento religioso que, segundo nos autos de uma certa juíza consta, não pode ser ofendido.
Quantas desconversões teriam acontecido? Temo e tremo só de pensar. Gosto de saber que os críticos estão preocupados com a minha fé.
Agora, considerem a irresponsabilidade cívica de Orson Welles, que antes mesmo de dar vida ao arrivista e mau exemplo Cidadão Kane, adaptou A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells, para uma novela radiofônica…
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