Contra a propaganda política; a favor da propaganda da política
Em agosto de 2013, eu (Mario) publiquei um artigo na revista Veja, em que comentava as manifestações que ainda ocorriam naquele ano. Hoje, véspera de mais um movimento popular contra o governo, acho oportuno republicá-lo no Antagonista. A impressão é de que, de lá para cá, o nível de politização melhorou acentuadamente, embora tenhamos muito a caminhar nesse sentido. Que o leitor faça a sua própria reflexão...
Em agosto de 2013, eu (Mario) publiquei um artigo na revista Veja, em que comentava as manifestações que ainda ocorriam naquele ano. Hoje, véspera de mais um movimento popular contra o governo, acho oportuno republicá-lo no Antagonista. A impressão é de que, de lá para cá, o nível de politização melhorou acentuadamente, embora tenhamos muito a caminhar nesse sentido. Que o leitor faça a sua própria reflexão.
(Detalhe curioso: a imagem do Cristo que tenta decolar e dá chabu, utilizada por mim, foi publicada meses mais tarde pela revista The Economist, citada no artigo.)
No balanço parcial das manifestações juvenis que varrem as ruas brasileiras, uma das boas baixas foi a mentira que prosperava no exterior, por causa da visão preguiçosa dos correspondentes estrangeiros — a de que o país estava às portas do Primeiro Mundo, não mais na condição de pedinte. Era com espanto que os (poucos) curiosos em relação ao Brasil recebiam, na Europa, a informação de que não era exata aquela história do Cristo Redentor decolando como foguete, para ficar na capa famosa da revista inglesa The Economist. O Brasil avançara? Sem dúvida. Mas menos pelas nossas qualidades do que pela conjuntura favorável e pela inércia natural que faz com que o amanhã seja melhor do que ontem nas latitudes onde tudo já esteve pior do que nunca.
As manifestações puseram óculos nos jornalistas internacionais. Enxerga-se, agora, que o nosso crescimento não passa de transtorno dismórfico coletivo. Que o tamanho absoluto do PIB é produto de uma ficção cambial. Que a escalada da “nova classe média” acontece de dez em dez prestações.
Que nosso nível educacional só seria piada se fôssemos capazes de entendê-la. Que os miseráveis ascenderam socialmente — mas à condição de pobres alimentados por programas de esmola com dinheiro público. Que as nossas cidades são de uma esqualidez vergonhosa. Que a frase do historiador latino Tácito nos cai à perfeição: em uma República muito corrupta, numerosas são as leis.
Eles não queriam ver e nós custamos a crer. A perda de contato com a realidade paralisou as consciências no Brasil, de maneira patológica, mesmo se se descontar a perturbada psicologia nacional. Chegamos a esse ponto através da substituição da propaganda da política pela propaganda política. Por propaganda da política, entenda-se a divulgação de ideários que exigem a tomada de posições, os conflitos e a negociação no âmbito institucional — compreendida como a busca de consensos que permitam à nação progredir na totalidade. Esse fundamento, nunca inteiramente assimilado pelos brasileiros, foi subvertido pela propaganda política, cuja essência é o discurso que só prevê a supressão do que lhe é contrário. Os mais adestrados no recurso, está óbvio, são os ditadores. No Brasil, a presença de um líder deletério, embora não tenha sido suficiente para deletar as instituições, enfraqueceu-as tanto que hoje elas se acham quase sem peso específico. O fenômeno ocorreu com o concurso do marketing personalista e a troca da negociação pela negociata. Os eventuais oponentes também se autoanularam. por motivos que apontam na direção do raquitismo das convicções e da falta de responsabilidade, o que inclui desonestidade. A oposição só renasce fugazmente durante as campanhas eleitorais.
Quando escasseia a propaganda da política e sobra a propaganda política, o vácuo se instaura — um tipo de vácuo em que, à diferença do espacial, a combustão é possível. Longe de ser colusão com a tentativa de ninjas, najas, jibóias e cascavéis de instrumentalizá-las, constate-se que as manifestações espocaram nesse contexto. Acusam-se os participantes de rejeitar a política. Aplicam-lhes o rótulo de “fascistas”, como se houvesse uma agenda autoritária a dirigir a maioria. A verdade, no entanto, é que as suas demonstrações são fruto da refutação da política pelos próprios políticos. Como exigir de jovens crescidos na audiência de disputas por butins que façam o elogio da representação democrática? As indignações antipolíticas não explodiram por excesso de política, mas por ausência dela. ainda que isso soe paradoxal.
A juventude brasileira não sabe o que é política, e outra vez a culpa é dos políticos. Eles transpuseram todas as fronteiras da decência. Agora, diante da exposição das nossas fragilidades, não conseguem simular dedicação a interesses que ultrapassem o comprimento das hélices dos seus helicópteros. Desconhecem que. até nos regimes absolutos, um governante tem de evitar o ódio do povo — e o melhor modo de fazê-lo é abster-se de apropriar-se da propriedade alheia. Surpreendidos pelas ondas de choque juvenis, correm para aprovar leis demagógicas, ignorando que não há legislação capaz de frear a corrupção se ela não é precedida pelos bons costumes.
Os políticos brasileiros desconhecem e ignoram, enfim, o que escreveu Niccolò Machiavelli, no século XVI, muito antes do nascimento da democracia moderna, no rastro das fúrias populares do seu tempo e da Antiguidade do historiador Tácito. Em meio ao tumulto, ninguém faz ideia de por onde começar a pôr a casa em ordem. Mas começar logo é imperativo. Para que a decolagem do Brasil não dê chabu, seja mais do que um truque gráfico, e os correspondentes estrangeiros tirem os óculos e voltem a relaxar, a propaganda política precisa dar lugar, com urgência, à propaganda da política. Das ruas às urnas, das urnas às ruas.
Os comentários não representam a opinião do site; a responsabilidade pelo conteúdo postado é do autor da mensagem.
Comentários (0)