Bolsonaro, o antropófago
Jair Bolsonaro fez mais uma de suas provocações nesta sexta-feira, vestindo um cocar e estufando o peito para receber a Medalha do Mérito Indigenista, uma comenda concedida a quem tem “serviços relevantes” prestados aos povos indígenas. Ele sabia que seus apoiadores se inflamariam nas redes sociais e que as pessoas que de fato dedicaram a vida ao tema se mostrariam ultrajadas. Como seria de prever, entidades emitiram notas de repúdio à homenagem. Um ex-presidente da Funai devolveu a mesma medalha, recebida 35 anos atrás...
Jair Bolsonaro fez mais uma de suas provocações nesta sexta-feira, vestindo um cocar e estufando o peito para receber a Medalha do Mérito Indigenista, uma comenda concedida a quem tem “serviços relevantes” prestados aos povos indígenas. Ele sabia que seus apoiadores se inflamariam nas redes sociais e que as pessoas que de fato dedicaram a vida ao tema se mostrariam ultrajadas. Como seria de prever, entidades emitiram notas de repúdio à homenagem. Um ex-presidente da Funai devolveu a mesma medalha, recebida 35 anos atrás.
A política de Bolsonaro em relação aos índios tem dois aspectos. Primeiro, ele quer abrir as terras indígenas à exploração econômica. Em segundo lugar, ele deseja que os índios sejam “incorporados à nossa sociedade”.
Como em tantas outras coisas, a visão de mundo de Bolsonaro nesses temas se choca contra o espírito da Constituição de 1988. Isso não é pecado. Mas traduzir essa visão de mundo “alternativa” em leis e outros tipos de iniciativa requer convencimento, negociação. Não é algo que se possa fazer em regime de urgência, como o projeto de lei que está no Congresso, patrocinado pelo governo, para liberar a mineração em áreas habitadas por índios.
As grandes mineradoras instaladas no Brasil reconheceram, elas próprias, que há algo de errado com a maneira como a conversa está sendo tocada. Numa carta divulgada nesta semana, O Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), que representa essas empresas, se pôs contra o projeto de lei: “A regulamentação precisa ser amplamente debatida pela sociedade brasileira, especialmente pelos próprios povos indígenas, respeitando seus direitos constitucionais, e pelo Parlamento brasileiro.”
O Ibram, obviamente, não é contra a exploração do subsolo. O que a organização não quer é atropelar as garantias que a Constituição oferece aos índios (e ser visto como comparsa de uma agressão ao meio ambiente).
O artigo 231 da Carta reconhece aos povos indígenas “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Em outras palavras, garante-se a cada povo um direito à diferença e um direito à terra, e se impõe ao governo o dever de protegê-los.
Isso é o oposto do que pretende o bolsonarismo. O bolsonarismo odeia as diferenças, e gostaria de apagá-las. “O que sempre quisemos foi fazer com que vocês se sentissem exatamente como nós”, disse Bolsonaro no seu discurso de hoje.
Uma frase do ex-ministro Fabio Weintraub traduz à perfeição o raciocínio: “Odeio o termo ‘povos indígenas’, odeio esse termo. Odeio. O ‘povo cigano’. Só tem um povo nesse país. Quer, quer. Não quer, sai de ré. É povo brasileiro, só tem um. Pode ser preto, pode ser branco, pode ser japonês, pode ser descendente de índio, mas tem que ser brasileiro, pô!”.
Não vou me alongar no assunto, mas faço um parêntese: a ideia de que todas as diferenças precisam se dissolver para formar um todo, que se pode chamar de povo ou nação brasileira, põe o bolsonarismo em perfeita sintonia com o fascismo.
Como diz o historiador inglês Kevin Passmore em um livrinho sobre o assunto, no fascismo “ninguém pode ser um cidadão dotado de direitos iguais a não ser que se conforme com as características culturais da maioria”. Um regime liberal, pelo contrário, “aceita a diversidade religiosa, linguística e cultural, desde que o cidadão obedeça às leis que se aplicam a todos”. Pois é.
Não é à toa que a medalha de Bolsonaro ofende e assusta os índios e quem trabalha por eles. Aliás, qualquer um que deseja viver em uma sociedade aberta e plural deveria ficar preocupado. Nosso antipresidente acredita que os índios precisam ser absorvidos pelo “Brasil de verdade”. Ele propõe, no fim das contas, uma espécie de antropofagia.
Os comentários não representam a opinião do site; a responsabilidade pelo conteúdo postado é do autor da mensagem.
Comentários (0)