Zeitgeist: o espírito do (nosso) tempo

12.02.2025

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O Antagonista

Zeitgeist: o espírito do (nosso) tempo

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Catarina Rochamonte
7 minutos de leitura 09.12.2024 13:54 comentários
Análise

Zeitgeist: o espírito do (nosso) tempo

O espírito do nosso tempo requer uma análise mais psicológica do que política. O analista político não alcança as sutilezas do movimento interno das massas

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Catarina Rochamonte
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Zeitgeist: o espírito do (nosso) tempo
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“Um espectro ronda a Europa: o espectro do comunismo”, escreveu Marx, em 1848, na abertura do Manifesto Comunista. Após causar muito terror e desgraça, esse espectro foi, num certo sentido, exorcizado. Mas ele, assim como o nazismo, foi apenas a manifestação de outro espectro mais difícil de afastar: a inclinação humana ao coletivismo e a tendência ao totalitarismo.

O espectro do totalitarismo voltou. Isto já deveria estar claro para uma mente mais alerta. O ódio difuso e mal dissimulado, o resgate de velhas fórmulas de preconceito, o medo arraigado de perder o próprio bem-estar (como se o bem-estar fosse um valor supremo), o delírio febril em torno de líderes e o pouco apreço ao indivíduo real que sofre, vítima do infortúnio ou do ódio de desajustados de pendor autoritário são alguns sintomas desse retorno.

O espírito do nosso tempo requer uma análise mais psicológica do que política. O analista político não alcança as sutilezas do movimento interno das massas.

Psique coletiva

Se considerarmos toda a história da humanidade, a civilização é ainda uma novidade, de modo que não deveríamos nos espantar tanto quando pessoas se comportam de um modo primitivo.

Há duas formas, porém, de nos relacionarmos com o primitivo: atualizando-o psiquicamente por meio da manifestação de seus símbolos e engrandecendo a personalidade pela assimilação de alguns dos elementos dispersos do inconsciente coletivo ou nos deixando subjugar inconscientemente pela sua força.

A psique coletiva compreende as partes inferiores das funções psíquicas, por conseguinte, como explica Carl Gustav Jung, o indivíduo que incorporar inconscientemente a psique coletiva preexistente ao seu próprio patrimônio ontogenético estenderá de modo ilegítimo os limites de sua personalidade, inflando-a, intensificando a importância do ego e levando o indivíduo a uma patológica vontade de poder.

O desenvolvimento da personalidade exige sua diferenciação da psique coletiva a fim de evitar uma nefasta fusão do individual no coletivo e o cultivo espiritual dessa personalidade pelo processo de autoconhecimento é condição para que indivíduos não sucumbam às suas próprias sombras e, sucumbindo, abram as portas para a sombra coletiva.

O nazismo só foi possível porque um enorme número de indivíduos espiritualmente embotados, psiquicamente fragilizados tornaram possível aquela terrível psicose em massa.

Islamismo, identitarismo e o tribalismo anti-universalista

Infelizmente vivemos hoje algo parecido. O massacre perpetrado contra judeus em território israelense em 7 de outubro de 2023 deu uma amostra do que o ódio bestial como sombra projetada pela psique coletiva do Islamismo é capaz de fazer e o suporte que parte do Ocidente deu aos perpetradores daquele massacre deu uma amostra do tipo de violência que a adoecida psique ocidental é capaz de justificar.

Apesar de ser uma religião mais nova que o judaísmo e o cristianismo, o islamismo se expressa como uma religião primitiva, tribal, fechada. Suas práticas, seus cultos, mas principalmente sua moral é incompatível com uma sociedade aberta e em constante evolução. Por isso mesmo encontram nela guarida milhões de almas entorpecidas e ainda imaturas, incapazes de assumir as altas responsabilidades que cabem a um indivíduo autônomo e consciente de si.

Do lado ocidental, o primitivismo aflora na política como sentimento de apego a grupos identitários. Como explica Antônio Risério no seu livro “Identitarismo”, a esquerda atirou longe o marxismo para se associar “tanto ao totalitarismo terceiro-mundista quanto ao obscurantismo religioso dos aiatolás da morte, ao antissemitismo e ao neorracismo”.

Após o vazio ideológico gerado pela crise do comunismo, a nova esquerda “elege o muçulmano ou o negro como arquétipo do “oprimido” e sucedâneo do “proletariado”: “A ditadura iraniana pode prender e matar mulheres, o fanatismo muçulmano pode incendiar homossexuais vivos na Nigéria, os ex-comunistas chineses podem promover campanhas genocidas contra os uigures. E tudo bem: não existe pecado fora dos limites geográficos tradicionais do Ocidente. […] O identitarismo, em seu tribalismo antiuniversalista, conduz-se como se não tivesse absolutamente nada a ver com isso”.

Ocidente e democracias liberais

A cultura ocidental não é superior em um sentido absoluto, pois cada povo e cada civilização tem sua contribuição a dar à humanidade. Mas há de se reconhecer que, do ponto de vista político, mais vale uma sociedade regida pelo direito e pelo respeito à liberdade individual do que sociedades regidas pela sharia ou pelo despotismo oriental.

A superioridade política do Ocidente está na liberdade dada ao indivíduo sob parâmetros éticos universais. Não se chegou a isso de uma hora para outra. Sua conquista, tanto no sentido das lutas concretas, quando dos esforços intelecto-morais para concebê-la, confunde-se com o próprio desenvolvimento civilizatório.

É um pouco nesse sentido que penso deva ser lido o clássico de Francis Fukuyama, “O fim da história”, ou seja, não no sentido de um fim concreto da história ou da perenidade de uma forma muito específica de regime político, mas como a intuição de que o impulso moral que está na base das democracias liberais não pode ser eliminado porque há algo de essencial nessa concepção política ocidental que é a democracia.

Paradoxalmente, sua essência é sua própria incompletude ou abertura, como explica o filósofo francês Henri Bergson, para quem o ideal democrático é originalmente religioso, é o eco político do apelo à fraternidade lançado pelo cristianismo. O apelo é definitivo, a resposta a ele depende da humanidade.

Homem primitivo e sociedade fechada

A democracia é, segundo Bergson, de todas as concepções políticas, a mais distante da natureza, a única que transcende, ao menos em intenção, as condições da sociedade fechada. Atribuindo ao homem direitos invioláveis, ela pede também ao homem uma fidelidade inalterável ao dever, uma capacidade de ser livre e autônomo, legislador e sujeito, um cidadão ideal, tal como queria Immanuel Kant.

Mas o homem, infelizmente, está mais perto da natureza do que do seu ideal. E o recrudescimento para o primitivismo das sociedades fechadas é uma ameaça constante que não pode ser menosprezada.

A sociedade fechada é aquele onde seus membros são indiferentes ao resto dos homens, estão sempre prontos a atacar ou a se defender, restritos a uma atitude de combate. Para ela, faz-se necessário um chefe que estabeleça, de um lado, o comando absoluto e, de outro, a absoluta obediência.

Autoridade, hierarquia e fixidez são as marcas de uma sociedade primitiva, que se reproduzem em sociedades não-democrática de qualquer época. A sedução que uma tal estrutura social ainda provoca em muitos é uma prova de que, por trás do verniz civilizatório, o instinto primitivo ainda pulsa em nós. Há “um instinto profundo de guerra que recobre a civilização”, explica Bergson.

A força do indivíduo

Estamos, então, condenados à fatalidade da guerra, ao retorno ao primitivismo das sociedades fechadas? Não, se aprendermos a lidar com as disposições da espécie que subsistem no fundo de cada um de nós.

Talvez devêssemos levar a sério a máxima da psicologia analítica segundo a qual algo interno que não se torna consciente acontece no mundo externo como uma sina. Somos nós que fazemos a nossa própria época. “Todo o futuro, toda história do mundo, brota fundamentalmente como uma gigantesca somatória das forças escondidas nos indivíduos”, escreveu Carl Gustav Jung

Deveríamos, pois, exigir de nós mesmos e dos políticos, maior consciência psicológica em vez de projetarmos coletivamente nosso primitivismo.

O avanço tecnológico não nos salvará, se não nos salvarmos de nós mesmos. “A humanidade geme, meio esmagada sob o peso do progresso que realizou”, escreveu Bergson no último parágrafo de seu último livro. “Ela não sabe o suficiente que seu futuro depende dela…”

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Catarina Rochamonte

Professora e escritora, com graduação, mestrado e doutorado em Filosofia, e pós-doutorado na área de Direito.

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