STF virou o monstro de Frankenstein STF virou o monstro de Frankenstein
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STF virou o monstro de Frankenstein

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Rodolfo Borges
9 minutos de leitura 01.07.2024 07:24 comentários
Análise

STF virou o monstro de Frankenstein

A grande contribuição acadêmica do 12º 'Gilmarpalooza' é a constatação de que o STF virou um monstro, uma criatura que projetou sua força para além da vontade do criador

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STF virou o monstro de Frankenstein
Foto Valter Campanato/Agência Brasil.

Para além dos conflitos de interesse e debates infrutíferos do Gilmarpalooza, como o protagonizado pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), um dos painéis em particular do 12º Fórum Jurídico de Lisboa se destacou como uma pérola, um diamante que resumiu todo o problema do protagonismo recente do Supremo Tribunal Federal (STF, foto) na figura do monstro criado pelo doutor Frankenstein.

No painel “Jurisdição constitucional e separação dos poderes”, realizado na sexta-feira, 28, Carlos Blanco de Morais, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, aludiu ao clássico debate entre Carl Schmitt e Hans Kelsen — sobre quem é o verdadeiro guardião da Constituição — para criticar o poder adquirido pelos tribunais constitucionais em todo o mundo, em contraposição ao que havia dito minutos antes o ministro do STF Flávio Dino, que defendeu o ativismo judicial.

“Tal como no célebre conto fantástico que imortalizou Mary Shelley, a criatura, ou seja, a justiça constitucional, projetou sua força para lá da vontade do criador”, disse o português, que resumiu assim a discordância entre os dois filósofos do direito mencionados: “Kelsen sustentava a criação de um tribunal constitucional especializado, enquanto Schmitt entendia que devia ser um órgão político com poderes moderadores, neste caso, o presidente da Alemanha”.

Estado judicial

Morais destacou que Kelsen venceu o debate no longo prazo, pois de fato as cortes constitucionais se tornaram as guardiãs das constituições, mas ponderou: “O poder da justiça constitucional cresceu, para alguns, até desmesuradamente, em todo o mundo, em particular na Europa”.

O professor disse que foram criados tribunais supraconstitucionais na União Europeia, “que chegaram ao ponto de transformar tratados de direito internacional público numa Constituição, num passe de mágica”, usurpando o poder constituinte do povo. Soa familiar?

Morais argumentou que, apesar de ter perdido o debate com Kelsen, Schmitt “anteviu aquilo que poderia ser um dia um Estado judicial”. “A justiça constitucional excedeu muito o papel do legislador negativo de que falava Hans Kelsen. E o debate hoje em dia não pretende questionar o papel do tribunal constitucional como único garantidor da Constituição, mas um certo papel jupiteriano de certos tribunais constitucionais”, analisou.

Uma lei não é a mesma coisa que uma sentença

Ao analisar a Suprema Corte americana, Schmitt manifestou preocupação com o “decisionismo judicial do Supremo Tribunal Federal americano quando este decide sobre dúvidas na base de princípios gerais abusivamente qualificados como norma”, seguiu analisando o português, destacando o risco de “uma sentença que nem sempre está assentada numa argumentação convincente, mas num argumento de autoridade, que no fundo iluminaria a dúvida e imporia o direito”.

Essa lógica levaria à emersão de um Estado judicialista, “um tribunal que operaria como uma aristocracia togada, um órgão aristocrático que operaria sem legitimidade popular do legislador”. Nem com 100 milhões de votos, professor? Morais seguiu, ainda referindo-se a Schmitt: “E ele adverte: uma lei não é a mesma coisa que uma sentença; uma sentença não é a mesma coisa que uma lei”.

O professor português continuou: “Pode uma Constituição, em democracia, admitir que um órgão do poder político possa ter o primado de mais do que uma função do Estado? Em democracia, pode, se o órgão que tiver esse primado for eleito democraticamente. Mas, sendo democrático um regime assim conformado, é um Estado de direito? Aí será duvidoso, porque o Estado de direito implica a separação de poderes”.

“Existem limites efetivos ao poder jurisdicional? Não terá o poder jurisdicional a última palavra em termos de qualquer tipo de controvérsia?”, questionou Morais, destacando “a necessidade de repensar aquilo que se pretende, à luz do principio da separação de poderes, de um tribunal constitucional: um tribunal substitutivo do legislador, um órgão moderador?”. Para ele, a resposta tem de estar na Constituição.

Ativismo judicial

Antes da intervenção de Morais, falou o confiante e convicto Flávio Dino, para defender o papel do Judiciário de busca de decisões consensuais, citando a audiência de conciliação que convocou para 1º de agosto sobre o orçamento secreto. Mas ele foi bem além disso:

“Há um subproduto jurídico da chamada polarização política, ou do populismo autoritário ou do extremismo, como queiram chamar. Esses fatores axiológicos, valorativos, políticos, ideológicos fazem com que agências de deliberação de deslinde de controvérsias entrem em colapso. Vejam o parlamento. Qual a dificuldade de o parlamento proceder ao deslinde de controvérsias? É porque é difícil ter debate. O parlamento brasileiro vive um momento em que a confrontação física se tornou inclusive método ordinário, no duplo sentido da palavra, de disputa política.”

Segundo ele, “isso faz com que os temas não seja resolvidos, porque não há ambiente”. Foi nesse ponto da explanação que Dino questionou se haveria clima para o Gilmarpalooza no Brasil, para os aplausos da plateia: “Às vezes, Gilmar [Mendes], perguntam, meu amigo [corregedor-nacional de Justiça, Luís Felipe] Salomão, por que fazer este fórum em Lisboa. Eu respondo a vocês: porque talvez no Brasil fosse impossível fazer, infelizmente”.

Ultrademandismo

Dino disse que o resultado dessa dificuldade para entendimento no Congresso Nacional é que a “jurisdição constitucional é sobrecarregada”. “A era do extremismo faz com que a funcionalidade e eficiência da política seja posta em xeque. E, portanto, na dinâmica da relação entre os Poderes, esse colapso corresponde ao ultrademandismo por sobre o sistema de justiça, entre os quais a jurisdição constitucional”.

“Isso significa dizer que o ativismo judicial é de ontem, é de hoje e é de amanhã. É como a lei da gravidade, pelo menos em nosso tempo, até que uma máquina substitua os juízes das cortes constitucionais, essa contra-utopia que eu espero não ver”, defendeu o ministro do STF, acrescentando que“a jurisdição constitucional não ameaça a separação de poderes, que a jurisdição constitucional não ameaça a democracia”. Para Dino, “pelo contrário, é condição de existência”.

O que o ministro não disse é que o STF não passou a ser demandado pelos políticos para solucionar controvérsias, mas para tentar reverter derrotas, como fez o governo Lula, por exemplo, ao acionar o Supremo para suspender a desoneração de impostos sobre a folha de pagamento de 17 setores da economia, cuja prorrogação havia sido aprovada pelo Congresso Nacional.

Parcimônia

Curiosamente, no mesmo dia em que Dino era apresentado em Lisboa a uma perspectiva diferente sobre seu ofício de ministro do STF, Edson Fachin defendia em um evento muito menos pomposo, realizado na Primeira Turma do Tribunal, que “em um momento de mudanças sociais intensas, cabe à Política, com p maiúsculo, o protagonismo, e ao Judiciário a virtude da parcimônia”.

Dias antes, o ministro Luiz Fux disse o seguinte durante o julgamento acerca da descriminalização do porte de maconha: “Nós não somos Juízes eleitos. O Brasil não tem governo de juízes.. Num Estado democrático, a instância maior é o parlamento”.

“Eu posso, mas eu devo?”

Para provar seu ponto durante o Gilmarpalooza, Dino citou até o golpe de Estado de araque na Bolívia, cujo líder, o general Juan José Zuñiga, disse que atendeu a um pedido do presidente Luis Arce Catacora para colocar os tanques na rua. O ministro do STF também lembrou a extradição de Olga Benário para dizer que “a autocontenção permitiu que uma brasileira grávida fosse entregue aos nazistas”.

Não foi muito convincente. Marcus Vinícius Furtado Coêlho, presidente da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que também compunha o painel, citou James Madison e seus artigos federalistas para falar sobre a necessidade de equilíbrio entre os poderes, pois “o poder não é exercido por anjos”.

“Eu posso, mas eu devo? Nem tudo que é permitido me convém, isso está em Coríntios. Nós, que somos leitores da Bíblia, sabemos disso”, comentou, dirigindo-se a Dino. Coêlho mencionou o caso da prisão após segunda instância, para defender que o Supremo não deveria tê-la aprovado — poucos anos depois, após “leitura política” de Gilmar Mendes, o STF reverteu a decisão para permitir prisão apenas após o trânsito em julgado.

Ditadura soberana

Lucio Pegoraro, professor catedrático da Universidade de Bolonha, também chamou a atenção para os riscos da “fé absoluta nos tribunais”. “Pode ter um sentido temporal, quando é preciso cumprir com a tarefa de remediar a ausência da política, uma política muitas vezes corrupta, incapaz, que muitas vezes não toma decisões”, disse, reconhecendo a necessidade de fazer cumprir a Constituição, mas ponderou:

“Quando se constrói uma doutrina da superioridade [dos tribunais], o risco é justamente de passar de uma ditadura temporária, comissária, a uma ditadura soberana, Isso não cumpre com as tarefas do constitucionalismo, e voltamos ao tema da divisão de poderes, porque há um desbalanceamento do poder judicial e doutrinário, como o direito romano ou medieval, contra o poder político.”

Coube ao último participante do painel, Guilherme Marinoni, professor da Universidade Federal do Paraná, resumir o status do STF que julgou a descriminalização da maconha: “Nada é mais importante do que se ter em conta que o Judiciário, a partir de um determinado momento, mediante o controle de constitucionalidade, passou a exercer a função de desenvolver a Constituição e de editar normas e precedentes gerais e vinculantes a partir da zona de penumbra dos direitos fundamentais”.

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Rodolfo Borges

Rodolfo Borges é jornalista formado pela Universidade de Brasília (UnB). Trabalhou em veículos como Correio Braziliense, Istoé Dinheiro, portal R7 e El País Brasil.

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