O tempo passou na janela e só a esquerda não viu
Entregadores de aplicativos protestam contra o governo porque não querem ser tutelados por sindicatos e ideias velhas
É sempre divertido poder usar as palavras de um esquerdista empedernido para zombar da própria esquerda. O título deste artigo foi tirado da letra de uma música de Chico Buarque. No verso original, o nome Carolina (que é também o título da canção) aparece no lugar de “esquerda”.
A música brotou na minha cabeça enquanto eu lia sobre as manifestações de motoqueiros (foto) contra a arrogante tentativa do PT de legislar em nome deles sobre as relações de trabalho com aplicativos de entrega. Não ouço essa canção há muitos anos, mas é o tipo de associação que Freud explica.
Os trabalhadores de aplicativo estão irritados por mais de uma razão.
Primeiro, porque não foram ouvidos adequadamente por quem diz querer “salvá-los”.
Em segundo lugar, porque temem que a mão pesada do Estado interfira na principal característica desse tipo de atividade, que é a flexibilidade – a capacidade que cada um tem de decidir quando e por quantas horas vai trabalhar, usando quase sempre mais de um aplicativo para fazer suas escolhas.
Finalmente, porque o governo quer induzi-los à sindicalização e eles sabem o que isso significa: ficarem atrelados a uma burocracia que, mais cedo ou mais tarde, acabará pondo os seus próprios interesses à frente dos interesses daqueles que ela representa. Toda burocracia cuida de si mesma antes de mais nada.
Paternalismo
A regulamentação desse novo mundo do trabalho deveria mexer apenas na questão previdenciária. Notoriamente, humanos não são bons em poupar para a velhice ou situações de emergência. Se forem jovens e andarem por aí de moto, pior ainda.
Faz sentido que o Estado force um pouco a barra, instituindo essa poupança. Até porque, na falta dela, os trabalhadores do futuro terão de arcar mais pesadamente com o hospital e a aposentadoria do “motoca” de hoje.
Em vez de limitar sua intervenção paternalista a essa esfera, no entanto, o petismo quer implementar algo muito mais radical: quer enquadrar o trabalho realizado por meio de apps numa moldura ainda reminiscente da CLT, promulgada em 1943 por Getúlio Vargas. O mundo vem passando por essa janela há 80 anos.
E será que é tudo em nome do bem dos entregadores? Não exatamente. Organizar o setor deve facilitar o trabalho de arrecadação de impostos pelo Estado. O governo quer dinheiro – o que não deveria ser surpresa nenhuma.
Ideias velhas
O próprio Vargas não criou as leis trabalhistas apenas para “proteger” o proletariado. Tinha em mente algo bem mais complexo: a organização da sociedade em um modelo corporativista. Os sindicatos, tanto de trabalhadores quanto de patrões, deveriam ser porta-vozes de certos grupos diante do Estado, que regeria o coral.
A esquerda de olhos fundos (para citar novamente a canção de Chico Buarque) tem uma baita nostalgia também desse aspecto do mundo antigo. Um Brasil com sindicatos enfraquecidos a deixou meio à deriva. Embora o lulismo continue tendo relevância eleitoral, já não é um movimento de massas como antigamente, quando CUT e companhia conseguiam encher as ruas com bandeiras vermelhas. Basta ver as melancólicas manifestações do último fim de semana em algumas capitais. Pretendiam ser um contraponto ao último grande evento da direita, mas reuniram um público ínfimo.
Os motocas que protestaram nestas segunda, 25, e terça-feira, 26, enxergam com clareza aonde levam as “boas intenções” do governo Lula. Não querem ser tutelados com base em ideias velhas. Mas a esquerda, como Carolina, não parece estar muito atenta aos avisos.
Leia mais: Recado a Lula: “Se o governo taxar, os motoca vai parar”
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