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O Antagonista

Como Putin se tornou um vilão de James Bond

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Rodolfo Borges
8 minutos de leitura 10.03.2024 12:16 comentários
Análise

Como Putin se tornou um vilão de James Bond

Classificado como terrorista pelo Kremlin, gênio do xadrez Garry Kasparov dissecou a ascensão do autocrata em livro, e atribui parte da culpa ao Ocidente

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Como Putin se tornou um vilão de James Bond
Foto: Kremlin

O histórico enxadrista Garry Kasparov passou a compor nesta semana a lista de “terroristas e extremistas” do governo russo. É de se perguntar por que demorou tanto para isso acontecer.

Kasparov está exilado nos Estados Unidos desde 2013. Foi detido duas vezes em 2007 por participar de protestos contra Vladimir Putin (foto). Em 2022, criou o Comitê Anti-Guerra da Rússia, considerado uma “organização indesejável” pelo governo russo no final do ano passado.

Em 2015, o recordista de meses no topo da lista de melhores jogadores de xadrez do mundo publicou um livro em que disseca a ascensão de Putin até atingir o nível de autocrata. Winter is Coming (o inverno está chegando) tem como subtítulo “por que Vladimir Putin e os inimigos do mundo livre têm de ser parados”.

Invasões

O livro foi publicado por ocasião da primeira invasão russa da Ucrânia liderada por Putin, na Crimeia, em 2014, e alertava para o que veio a acontecer quase dez anos depois, quando as tropas russas voltaram a ocupar território ucraniano, desta vez deflagrando uma guerra que já dura mais de dois anos. A Geórgia já tinha sido invadida pelos russos em 2008, em dois territórios diferentes.

Kasparov recupera a história de Putin, um ex-agente da KGB que se tornou primeiro-ministro em 1999 e, depois de virar presidente em 2000, teve o poder consolidado pela crise com os terroristas chechenos que tomaram um teatro em Moscou, dois anos depois. Desde então, Putin governa a Rússia como um mafioso, diz o enxadrista.

Máfia

“Em 2000, quando Putin assumiu o comando, não havia russos na lista de bilionários da revista Forbes. Em 2005, havia 36. Em 2008, havia 87, mais do que Alemanha e Japão combinados, em um país onde 13% dos cidadãos estão abaixo da linha nacional de pobreza, vivendo com 150 dólares por mês. Putin e seus defensores externos se gabam do crescente PIB russo, mas é como tirar a temperatura média de todos os pacientes em um hospital”, comenta Kasparov no livro.

O enxadrista destaca também que, em 2015, mesmo após a imposição de sanções à Rússia e a queda nos preços do petróleo, o país mantinha 88 bilionários na lista da Forbes, que nunca mencionou o próprio Putin ou seus aliados mais próximos. “Acho impossível acreditar que um homem como Putin, que detém o poder de vida e morte sobre 88 bilionários, não seja o mais rico deles”, acrescenta.

Alexei Navalny, o opositor russo de Putin morto na prisão em fevereiro, também se tornou um estorvo para o Kremlin por denunciar o mesmo Estado mafioso.

E o Ocidente?

O mais instigante do livro de Kasparov é, contudo, a análise que ele faz sobre o papel das potências ocidentais no estado de coisas atual da Rússia. Segundo ele, o país só teve oito anos de democracia entre a queda da União Soviética e a substituição de Boris Yeltsin por Putin, na virada do século.

Kasparov cobra o Ocidente, em especial os Estados Unidos e os presidentes democratas Bill Clinton e Barack Obama, por não terem percebido, primeiro, a importância de colaborar para fortalecer as instituições russas ao longo da década de 1990 e, depois, por não terem compreendido a melhor forma de lidar com Putin.

O desafio não era fácil, Kasparov reconhece: “Eu questionaria a forma como essas reformas econômicas e pacotes de ajuda foram tratados, embora fosse uma tarefa extremamente difícil em quaisquer circunstâncias. A história das ditaduras de esquerda em transição para a democracia com economias de mercado é uma pequena coleção de histórias de terror. O comunismo é como uma doença autoimune; não mata em si, mas enfraquece tanto o sistema que a vítima fica indefesa e incapaz de lutar contra qualquer outra coisa. Destrói o espírito humano a nível individual, pervertendo os valores de uma sociedade livre bem sucedida”.

Solo envenenado

A análise é longa, mas vale a pena seguir um pouco mais nela: “Não é por acaso que as autocracias de direita têm um histórico muito melhor de emergir da repressão política e de alcançar o sucesso democrático e econômico. Chile, Portugal, Espanha, Coreia do Sul, Taiwan – os seus regimes se tratavam do poder pelo poder, sem uma ideologia mais profunda. Quando os seus regimes caíram, na maioria dos casos com eleições, as raízes, os valores humanos da liberdade individual, ainda eram suficientemente saudáveis para florescer”.

Kasparov diz que “a ideologia comunista ataca tanto a raiz como os ramos e envenena o solo”. “Muitos países da Europa Oriental ainda enfrentam dificuldades, apesar da influência estabilizadora e do enorme apoio financeiro fornecido pela União Europeia durante décadas. Para algumas nações, foi psicologicamente mais fácil erradicar o comunismo porque este era visto como um subproduto da odiada ocupação soviética e estavam ansiosos por jogar tudo fora.”

O enxadrista faz questão de dizer que a comparação não é um endosso a qualquer tipo de ditadura. “Mas explica em parte por que as antigas repúblicas da URSS têm lutado tanto e por que os regimes de Cuba e da Coreia do Norte provaram ser tão duráveis. É a diferença entre as pessoas que se ressentem por não serem livres e as que acreditam que não merecem a liberdade.

Mundo e líderes diferentes

“O ano de 1992 viu o início de um debate modesto sobre como deveria ser a nova ordem mundial. Não estava mais dividido entre duas superpotências rivais. Seria um mundo unipolar onde os Estados Unidos, com a maior parte da Europa a reboque, definiriam a agenda e imporiam a sua vontade? Ou era um mundo multipolar ou não polar, sem centro de gravidade moral? Os EUA, com seu enorme exército, a sua enorme economia e a falta de qualquer oposição política, eram a hegemonia global de fato, quer quisessem abraçar o papel ou não. A verdadeira questão era como usariam essa influência”.

Mas o mundo mudou. E, em meio a conflitos no Iraque, no Kuwait e na antiga Iugoslávia, também mudaram os líderes. “Os ciclos sazonais da história moldam e são moldados pelas políticas e planos humanos. As duras estratégias de isolamento e contenção da Guerra Fria deram lugar ao envolvimento e a uma superabundância de cautela”, analisa Kasparov.

Contenção

Segundo ele, “a contenção permitiu que as ameaças crescessem descontroladamente e que genocídios ocorressem em vários continentes, enquanto o poder esmagador do mundo livre observava”.

“Uma dessas ameaças não controladas cumpriu o seu potencial destrutivo no 11 de Setembro, empurrando o pêndulo de volta à intervenção e, inevitavelmente, à reação exagerada. As duas guerras exaustivas que resultaram disso ajudaram a levar ao poder um presidente dos EUA com um mandato para, o que mais?, contenção e envolvimento. Obama cumpriu o seu mandato ao extremo, como fizeram quase todos os seus antecessores antes dele. A Europa descansou sobre os louros por tanto tempo que luta apenas para permanecer de pé quando confrontada com a xenofobia e o terror no interior e uma Rússia agressiva no exterior. Mais uma vez as estações estão mudando e novas ameaças foram liberadas para florescer e escapar de suas fronteiras”, conclui.

Crocodilos

“A Rússia de Putin é claramente a maior e mais perigosa ameaça ao mundo hoje, mas não é a única”, diz Kasparov, destacando que Irã, Coreia do Norte e Síria estão na “mesa de barganha há tempo considerável com as maiores potências do mundo sem ter feito concessões significativas”.

“Não é novo falar sobre os desafios do mundo multipolar que emergiu com o fim da Guerra Fria. O que falta é uma estratégia coesa para lidar com esses desafios. Quando a Guerra Fria acabou, os vencedores foram deixados sem um senso de propósito e sem um inimigo comum contra o qual se unirem. Os inimigos do mundo livre não têm essas dúvidas”, constata o enxadrista, que segue, ainda em referência aos “inimigos do mundo livre“:

“Eles ainda se definem pela sua oposição aos princípios e políticas da democracia liberal e dos direitos humanos, dos quais veem os Estados Unidos como o principal representante simbólico e material. E, no entanto, continuamos a enfrentá-los, a negociar e até mesmo a fornecer a esses inimigos as armas e a riqueza que utilizam para nos atacar. Parafraseando a definição de apaziguamento de Winston Churchill, estamos alimentando os crocodilos, esperando que eles nos comam por último’.”

Hoje, Putin ameaça o Ocidente abertamente com armas nucleares, ao pior estilo dos vilões da saga 007. Ao contrário dos inimigos de James Bond, contudo, sua história não é secreta ou misteriosa, por mais que ele tente escondê-la. O enredo já foi contado por muitos adversários, por vezes às custas das próprias vidas, e está exposta para todos, inclusive para quem finge não ver.

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Rodolfo Borges

Rodolfo Borges é jornalista formado pela Universidade de Brasília (UnB). Trabalhou em veículos como Correio Braziliense, Istoé Dinheiro, portal R7 e El País Brasil.

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