Ainda estou aqui

23.04.2025

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Catarina Rochamonte
5 minutos de leitura 28.12.2024 18:12 comentários
Análise

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“Ainda estou aqui” não deixa transparecer em nenhum momento qualquer traço de servilismo ideológico. Apesar do pano de fundo político, a pretensão não é fazer proselitismo de esquerda; o filme é um drama, não um panfleto

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Ainda estou aqui
Cena do filme Ainda Estou Aqui. Divulgação / ainda estou aqui / RT Features e VideoFilmes

Eis que chega o dia de escrever meu último artigo do ano. E nesses dias – de festas para alguns, de reflexão para outros, de nostalgia para muitos – senti-me impelida a escrever sobre o filme brasileiro “Ainda estou aqui.”

Não sendo eu crítica de cinema, não escrevo como especialista, apenas como espectadora. E, como tal, já antecipo meu juízo de valor: o filme é bonito, é bem feito, é comovente.

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É surpreendente que seja assim, uma vez que o tema da ditadura brasileira já foi tão explorado nas telas que se tornou um clichê pouco atrativo. O referido longa-metragem, porém, teve o grande mérito de tratar o tema sem distorções, sem tornar a arte serva da política.

Daí minha surpresa ao ler, em um desses sites mais à direita, uma crítica superficial e rasteira cujo título é “apesar de badalado pela mídia, ´ainda estou aqui não vale a ida ao cinema.” A referida crítica, maldosa e mal escrita, faz aquilo que injustamente acusa o filme de fazer: deixa a ideologia falar mais alto.

“Ainda estou aqui” não deixa transparecer em nenhum momento qualquer traço de servilismo ideológico. Apesar do pano de fundo político, a pretensão não é fazer proselitismo de esquerda; o filme é um drama, não um panfleto.

Claro que há um componente político, claro que uma mensagem política é passada, mas ela é passada com êxito porque flui naturalmente como algo que se vai depositando em nosso cérebro enquanto nossa emoção está envolvida com sentimentos universais.

O longa-metragem dirigido por Walter Salles, como muitos já sabem, é uma adaptação do livro de Marcelo Rubens Paiva e conta a história de sua mãe, Eunice Paiva (interpretada magistralmente por Fernanda Torres), uma mulher com cinco filhos que teve a vida bruscamente modificada após o sequestro e assassinato de seu marido (Rubens Paiva, interpretado por Selton Mello) por agentes do regime militar.

Uma longa parte do filme é bem gasta retratando “a poética cotidiana na casa da família, que vai sendo gradativamente interrompida pela escalada do autoritarismo”, como bem notou o cineasta Josias Teófilo, em sua resenha na Crusoé.

De repente, seguem-se cenas intermináveis de tensão e a narrativa passa a focar a força de Eunice, a forma como ela passa a conduzir com coragem e firmeza de ânimo a sua vida e a dos seus filhos.

Há um tema que corre em paralelo que, a meu ver, dá o tom especial do filme: o tempo. O tempo em suas várias expressões: o tempo que passa, as memórias que ficam, as memórias que se vão ou que se escondem no fundo da alma, presa no corpo já velho e cansado que sucumbiu ao mal de Alzheimer.

É tocante a aparição de Fernanda Montenegro como Eunice. Aquela que foi a fortaleza moral da família e a protagonista durante todo o filme, aparece, em uma tomada de vídeo, em plano secundário, no canto da mesa, alheia ao burburinho, à azafama do entorno, absorta em si mesma.

O filme, em suma, faz jus ao sucesso. É delicado e profundo. E quisera eu parar por aqui meu comentário, apenas atestando a sua excelência. Mas, assim como apontei a insensatez de um crítico de direita, não me furtarei a apontar o absurdo das críticas da militância da esquerda identitária.

De modo geral, militantes identitários criticaram o filme porque ele abordou o tema da ditadura pelo recorte de uma família branca, abastarda, burguesa, moradora do Leblon.

Foi constrangedor ver o já bastante esquerdista Marcelo Rubens Paiva (filho de Eunice e autor do livro que embasou o filme) ter que dar satisfação sobre isso, no programa Roda Viva, confrontado com a crítica de “questão de classe” e “recorte racial” de um tal youtuber chamado “chavoso da USP”, que viralizou nas redes sociais.

Esse processo autofágico da esquerda por meio do identitarismo é assunto longo, ao qual pretendo voltar em artigo posterior. De momento, chamo atenção para algo que não me sai da cabeça: todo esse drama que os brasileiros enfrentaram entre 1964 e 1985 e que hoje rememoram através da arte é a realidade atual dos nossos irmãos venezuelanos.

Quem se compadece verdadeiramente das vítimas da ditadura brasileira deveria se compadecer igualmente das vítimas da atual ditadura venezuelana. Que uma ditadura tenha sido de direita e que a outra seja de esquerda, pouco importa. Já passa da hora de amadurecermos como nação democrática e livre. Livre de ideologias perversas que justificam tais aberrações e atrocidades.

Há muitos “Rubens Paivas” sendo mortos pelo regime de Nicolás Maduro; há muitas mulheres como Eunice, suportando a dor da perda de seus maridos e seus filhos sequestrados, torturados e assassinados por esse cruel regime, que já se vai tornando pior do que uma ditadura e se transformando em um Estado totalitário.

Aos que criticam os negacionistas da ditadura militar brasileira e que, com razão, combatem os reacionários que pretenderam reinstaurá-la, fica o meu apelo para que condenem toda e qualquer ditadura, inclusive aquela que se diz socialista.

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Catarina Rochamonte

Professora e escritora, com graduação, mestrado e doutorado em Filosofia, e pós-doutorado na área de Direito.

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