A era da caridade vulgar
A discrição está entre as bases da virtude para o imperador romano Marco Aurélio. Numa época dominada pelas redes sociais, isso parece cada vez mais distante
A discrição está, junto com a prudência, entre as bases da virtude para Marco Aurélio. O imperador romano diz, em suas Meditações, que o bem deve ser feito “com discrição e gravidade, para que outros também possam ser persuadidos e atraídos para o exemplo semelhante, mas sem qualquer ruído e exclamações apaixonadas”. Numa época dominada pelas redes sociais, isso parece cada vez mais distante.
A enchente no Rio Grande do Sul trouxe a questão à tona de uma forma inédita. É a maior tragédia com que o Brasil se defronta desde que se consolidou a ruidosa atividade de influenciador digital. Se essas pessoas vivem de exibir tudo o que fazem, bem roteirizado ou não, por que iriam esconder uma ação pela qual merecem aplausos?
Concluiu-se desse raciocínio, em defesa de Pedros Scoobys, Neymares e Felipes Netos, que é melhor fazer o bem e expô-lo em vídeos e postagens do que não fazer nada. Se a escolha for apenas entre essas duas opções, faz sentido. Mas há um terceiro caminho, que se tornou ainda mais virtuoso diante da tentação de ganhar alguns likes (e algum dinheiro): ajudar sem fazer a autopromoção.
Fiz algo caridoso?
“Fiz algo caridoso? Então sou beneficiado por isso. Veja que isso, em todas as ocasiões, pode se apresentar à sua mente e nunca deixe de pensar nisso. Qual é a sua profissão? Ser bom”, ensina Marco Aurélio. No caso da tragédia do Rio Grande do Sul, a virtude de verdade está, portanto, na legião de voluntários anônimos que atuou e, em alguns casos, arriscou-se para ajudar as vítimas.
É um comportamento que contrasta com o da primeira-dama Janja (foto), que desde o início da reação federal à tragédia chama mais atenção para si mesma do que para qualquer outra coisa. No seu caso, pode ser que ela de fato tenha ajudado de alguma forma. Adotou um cachorro e incentivou as doações, mas ao custo do desnecessário desgaste político para um governo que já tinha entrado na história com o pé esquerdo.
Agora, tudo o que a primeira-dama faz no Sul está sob escrutínio — e da pior perspectiva possível. Viralizou nas últimas horas um vídeo que sugere que ela encenou o salvamento de um cachorro para as câmeras. Na verdade, Janja estaria apenas brincando com um militar, mas quem vai acreditar nisso depois de tanta pose?
Sem ser vulgar
Do ponto de vista da imagem, até a tão criticada família Bolsonaro se saiu melhor no Rio Grande do Sul do que a mulher de Lula ou a deputada Maria do Rosário (PT-RS), por exemplo, que se notabilizou por circular pela Porto Alegre alagada (tudo filmado e compartilhado) sem nem sequer sujar os tênis.
O vereador Carlos Bolsonaro (PL-RJ) apareceu de capa de chuva em meio à lama e o irmão Eduardo (PL-SP), deputado federal, circulou de moto aquática por casas alagadas. Se for para ficar apenas olhando os voluntários, não há razão para compartilhar em vídeo.
Para os influencers e políticos que desejam alardear virtude sem botar em dúvida a intenção de sua caridade, a dica é não expor as boas ações diretamente, mas dar um jeito de que todo mundo fique sabendo delas por outros caminhos. Ainda estarão longe da virtude real, mas não soarão tão vulgares.
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