Bolsonaro e o liberalismo do medo
Judith Shklar (não me peça para pronunciar o sobrenome) precisou de menos de trinta páginas, divididas entre dois ensaios, para deixar sua marca na história do pensamento político. O primeiro ensaio, de doze páginas, chama-se "A Crueldade Antes de Tudo" ("Putting Cruelty First"). O segundo, de dezessete, "O Liberalismo do Medo" ("The Liberalism of Fear"). Shklar morreu em 1992, aos 63 anos. Há um revival em torno dela. Eu, que jamais havia lido uma linha da sua obra, fui dar uma espiada e achei seus dois textos célebres extraordinariamente úteis para o momento atual...
Judith Shklar (não me peça para pronunciar o sobrenome) precisou de menos de trinta páginas, divididas entre dois ensaios, para deixar sua marca na história do pensamento político. O primeiro ensaio, de doze páginas, chama-se “A Crueldade Antes de Tudo” (“Putting Cruelty First”). O segundo, de dezessete, “O Liberalismo do Medo” (“The Liberalism of Fear”). Ela escreveu muito mais, é claro, e seus livros são valorizados por quem trabalha com teoria política e história das ideias. Mas esses dois textos curtos são considerados sua contribuição mais forte e original.
Shklar morreu em 1992, aos 63 anos. Há um revival em torno dela. Eu, que jamais havia lido uma linha da sua obra, fui dar uma espiada e achei seus dois textos célebres extraordinariamente úteis para o momento atual. No Brasil, especialmente, há gente trabalhando o tempo todo para obscurecer os significados do liberalismo e da democracia. Shklar oferece o antídoto. Ela delimita com simplicidade e nitidez absolutas o mínimo denominador comum das sociedades liberais e democráticas – aquilo de que elas não podem abrir mão, sob pena de se corromperem.
A graça dos argumentos de Shklar está na maneira como ela os desenvolve, mas o sentido é fácil de resumir. Segundo a autora, as raízes do liberalismo estão fincadas no século XVI, quando a Europa enfrentava as sangrentas guerras de religião entre católicos e protestantes.
Ela escreve: “As bases mais profundas do liberalismo foram assentadas pelos primeiros defensores da tolerância religiosa. Estão calcadas na convicção, forjada no horror, de que a crueldade é um mal absoluto, uma ofensa contra Deus e a humanidade. É dessa tradição que o liberalismo do medo surgiu e continua a ter relevância em meio aos terrores do nosso tempo.”
O liberalismo do medo não diz qual o melhor tipo de sociedade. Como afirma Shklar, ele está preocupado apenas com a “contenção de danos”. Seu propósito é evitar que as pessoas vivam atemorizadas com quem as governa. É desenvolver anteparos contra a possibilidade de que regimes arbitrários e violentos se consolidem no poder. É, finalmente, um alerta contra políticos que transigem com a crueldade, e não acreditam que ela é o mal que precisa ser evitado antes de tudo.
Jair Bolsonaro (foto), hoje mesmo, repetiu que é importante ficar neutro diante da invasão da Ucrânia pela Rússia. Depois de quase sessenta dias em que as evidências da perversidade russa vão se empilhando, junto com escombros e cadáveres de ucranianos, ele ainda acha que nem mesmo uma palavra de repúdio deve ser apresentada contra Putin. Claramente, para ele, a crueldade não é o pior de tudo.
Semanas atrás, seu filho Eduardo primeiro zombou da tortura a que a jornalista Miriam Leitão foi submetida durante a ditadura militar, e depois pôs em dúvida a própria existência da tortura, num requinte de estupidez. Ele também não acredita que evitar a crueldade vem em primeiro lugar.
Apesar disso, políticos e pastores de todo o país não apenas acham belo o bolsonarismo, como ainda o misturam com religião e vontade divina.
Bolsonaro gosta de usar a palavra liberdade, inclusive para elogiar a ditadura militar e defender as delícias de um golpe de estado. Quando a linguagem política se deturpou a esse ponto, é bom voltar ao básico. O liberalismo do medo não diz que o repúdio à crueldade é o único critério para escolhas políticas, mas diz que, sem ele, não se pode falar em democracia, ou desenvolvimento, ou qualquer outro ideal pomposo.
A utilidade da doutrina de Shklar está no seu minimalismo. E Jair Bolsonaro, seus filhos e apoiadores mais entusiásticos – inclusive os religiosos – não atingem a nota de corte.
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