Mais de um ano depois, a Igreja brasileira ainda se pergunta por que o papa recebeu Lula
No mês passado, no discurso que marcou a volta de Lula à cena política, após Edson Fachin anular as condenações do petista no âmbito da Lava Jato, o ex-presidente fez questão de relembrar a visita que fizera ao papa Francisco em fevereiro de 2020, três meses depois de deixar a cadeia. Naquele pronunciamento, Lula disse que o chefe da Igreja Católica teve "coragem" de recebê-lo. "Sou grato porque o papa Francisco é inegavelmente o religioso mais importante que nós temos neste momento...
No mês passado, no discurso que marcou a volta de Lula à cena política, após Edson Fachin anular as condenações do petista no âmbito da Lava Jato, o ex-presidente fez questão de relembrar a visita que fizera ao papa Francisco em fevereiro de 2020, três meses depois de deixar a cadeia.
Naquele pronunciamento, Lula disse que o chefe da Igreja Católica teve “coragem” de recebê-lo. “Sou grato porque o papa Francisco é inegavelmente o religioso mais importante que nós temos neste momento”, afirmou também.
O Antagonista confirmou o óbvio: a ida de Lula ao Vaticano será explorada pela campanha petista na corrida presidencial de 2022. O papa, conscientemente ou não, deu matéria-prima para o ex-presidente sair dizendo por aí que mãos divinas já o tinham inocentado antes mesmo da declaração de suspeição do ex-juiz Sergio Moro pelo Supremo.
Mais de um ano depois da visita, a cúpula da Igreja Católica no Brasil e vaticanistas ainda tentam entender o que levou o papa a receber Lula, sobretudo naquele contexto, em que o petista, acompanhado de seu ex-chanceler Celso Amorim e de advogados como Cristiano Zanin, intensificava uma estratégia de defesa que incluía vender ao mundo a imagem de uma Lula “perseguido político”.
O encontro entre Francisco e Lula e sua comitiva foi considerado de caráter privado e pessoal. À época, surgiram notícias de que o presidente argentino Alberto Fernández, amigo do petista, teria sido o responsável por marcar o encontro. Ele influenciou, sim, mas há outra pessoa-chave na confirmação da agenda: o advogado Juan Grabois, uma espécie de Guilherme Boulos argentino — a Crusoé já fez um perfil dele.
Garbois se aproximou do hoje papa quando Jorge Bergoglio ainda era cardeal em Buenos Aires. Foi ele quem fez um auê após dizer que havia sido barrado pela Polícia Federal de Curitiba ao tentar levar ao então presidiário um terço supostamente abençoado pelo papa. O Vaticano nunca confirmou que Grabois era um emissário de Francisco.
Aquele encontro em fevereiro de 2020 não constava, de fato, na agenda oficial de Francisco, geralmente cumprida pela manhã e divulgada pelos canais de comunicação da Santa Sé. Desde o início do seu papado, o pontífice costuma reservar as tardes para encontros combinados diretamente com seus secretários ou por ele mesmo. Essas visitas ocorrem na Casa Santa Marta, onde o papa mora, e não no Palácio Apostólico, onde ele recebe formalmente chefes de Estado. São nessas reuniões informais em que ele se encontra, por exemplo, com artistas, ex-presidentes e personalidades em geral.
“O que o papa faz à tarde é tudo por conta dele, tudo de ordem pessoal”, disse a O Antagonista, em reservado, um funcionário do Vaticano. “A gente não tem esse controle do que ele faz fora da agenda oficial e ele não quer dar esse controle a ninguém”, acrescentou a fonte.
A repercussão da visita de Lula, naquele mesmo dia, pegou a estrutura de comunicação do Vaticano de surpresa. As fotos e até um vídeo feito da conversa entre o petista e o papa foram alardeados pela equipe do ex-presidente brasileiro, logo após o encontro informal.
“Agradeço pelo gesto de sua vinda, muito obrigado. Fico feliz em vê-lo andando pela rua”, dizia o papa a Lula na gravação que rapidamente viralizou no Brasil. O PT, claro, não perdeu a oportunidade de transformar um bate-papo privado em agenda oficial do papa. Virou um carnaval papal.
O papa está longe de ser um alienado quando se trata de política, sobretudo da América Latina. Seja por meio do núncio apostólico no Brasil ou por bispos e cardeais brasileiros mais próximos — como dom Claúdio Hummes e dom Raymundo Damasceno –, Francisco sabe (e sabia naquela época) o que se passa por aqui, com um país polarizado e com Lula, naquele momento condenado por corrupção e lavagem de dinheiro, tentando cavar a narrativa da inocência e da “perseguição”.
“É preciso ficar claro que o papa Francisco sabia o que estava fazendo. Ocorre que ele não se preocupa mesmo se vão dizer que o Lula usou politicamente a visita ou não. Ele não se preocupa muito com isso. Faz o que acredita que deve ser feito e ponto”, comentou com este site um padre com acesso à cúpula dos bispos brasileiros.
Um cardeal, pedindo reserva para “não colocar fogo na discussão”, disse a O Antagonista:
“O papa tem a liberdade de receber quem ele quiser. Aquela visita foi de caráter pessoal, privado. O que os visitantes fazem com aquelas visitas não depende mais do papa. Não é o papa que vai dizer: ‘Olha, não divulgue este encontro, não diga isso, não diga aquilo’. Se o Lula usou e vai usar a visita como trunfo para propaganda política, isso também não depende do papa. Porém, é evidente que, ao receber uma pessoa como o Lula, era previsível que isso aconteceria. Ele recebeu com essa consciência, ao mesmo tempo que não queria deixar de recebê-lo.”
Lula soube se aproveitar do perfil do papa Francisco, que não cansa de falar sobre a importância de “uma Igreja aberta”, em diálogo, capacidade de escuta, ternura e misericórdia. Lula também sabe que pode facilmente colar os programas sociais de seu governo na chamada Doutrina Social da Igreja Católica. Quando da visita ao Vaticano, não por acaso, o PT divulgou nota dizendo que a pauta do encontro seria “o combate à fome, à desigualdade e à intolerância”.
Bispos brasileiros dizem não haver a menor possibilidade de o papa ter sido “ingênuo” ao receber Lula. Um ou outro prefere falar em “imprudência”, mas sempre ponderando que “esse é o jeito do papa, ele não tem medo do que vão pensar”. Em 2013, por exemplo, já no seu primeiro ano de pontificado, o papa recebeu o ditador Nicolás Maduro, em agenda oficial, ciente de que surgiriam muitas críticas. Em 2017, abriu as portas do Palácio Apostólico para Donald Trump — de cara fechada, mas abriu.
De formação jesuíta, o papa argentino entende que “conversar com todos” não implica alinhamento. No polêmico Sínodo da Amazônia, em 2019, Francisco deixou as discussões correrem, mas, no fim, optou por um documento bem mais conservador do que se especulava. “Ele é realmente aberto a todos e disponível para todas as discussões. Isso não é da boca para fora. Por isso, ele acaba esbarrando em imprudências e, querendo ou não, tomando partidos, mas esse comportamento é coerente com o que ele defende publicamente”, disse outro religioso brasileiro com trânsito na CNBB.
Por outro lado, Francisco tem alguns gestos que refletem cuidado com o uso político de sua imagem. Em missas com personalidades, desde quando era arcebispo de Buenos Aires, ele evita distribuir as hóstias — dando essa missão a algum diácono –, justamente para fugir de fotos com potencial de interpretação política. Também vale ressaltar que Bergoglio nunca pisou em seu país, a Argentina, desde que virou papa, em 2013. Dizem que a decisão é no intuito de não ser tentado a se posicionar politicamente.
No caso da visita de Lula, é cristalino que não precisava assessor papal algum alertar para a possibilidade de uso político daquele encontro. “Foi uma visita de caráter político, tanto da parte do Lula como da parte do papa. Para mim, só essa interpretação é possível, sobretudo dentro do contexto da época”, sustentou um dos religiosos ouvidos nesta reportagem. “Ele sabia e sabe quem é o Lula e tinha conhecimento da luta judicial que se travava. Por mais que digam que ele recebe todo mundo, a agenda de uma papa é apertadíssima. A escolha sobre quem receber tem, claro, um significado”, emendou.
O arcebispo metropolitano de Campo Grande, dom Dimas Lara Barbosa, que já ocupou o cargo de secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), disse a O Antagonista que, mesmo tendo sido um encontro de caráter privado do papa, “qualquer iniciativa da Santa Sé vem sempre a partir de uma busca de orientação”.
“O papa, como qualquer chefe de governo, precisa de uma assessoria e tem uma assessoria. Eu acredito que, naquela ocasião, ele foi orientado de que era melhor receber o Lula do que tomar uma posição contrária.”
Questionado sobre a capacidade do papa de perceber que a situação seria usada politicamente, dom Dimas respondeu:
“Não é fácil. A gente precisa tomar muito cuidado para não se deixar manipular, porque as tentativas sempre existem, de políticos de esquerda, de centro ou de direita.”
Mirticeli Medeiros, pesquisadora de História da Igreja na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, não acredita que houve intenção política do papa ao receber o ex-presidente brasileiro.
“Francisco dificilmente rejeita uma visita informal, ainda mais quando se trata de uma personalidade, seja da política, da música ou das causas sociais. Ele recebeu o Lula em sua casa, não se tratava de uma visita oficial, de Estado. A divulgação em si foi encabeçada pela própria assessoria do Lula.”
A vaticanista afirmou também que as visitas não significam “apoio irrestrito do papa ao legado de determinada figura política”.
Filipe Domingues, doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, acredita que Francisco aceitou receber Lula, em privado, como “um gesto pastoral” condizente com o tom do seu pontificado.
“O papa tem manifestado, em seu pontificado, que quer acolher todas as pessoas, quem quer que seja, independentemente da intenção de quem o procura. É a ideia de que quem procura a Igreja tem que encontrar uma porta aberta.”
Domingues afirmou que resiste à interpretação de que, ao receber Lula, o papa “tomou partido”.
“Tenho muita convicção de que a intenção dele não foi acirrar a polarização no Brasil ou tomar partido. Não foi isso. Ele não embarcou em uma estratégia política. Acho que dizer isso é um exagero. Foi um gesto pastoral. Talvez ele e o Vaticano não tivessem a noção completa de como isso repercutiria no Brasil.”
O vaticanista lembrou que, em 2016, o papa foi questionado se o gesto de ter cumprimentado, no Vaticano, Bernie Sanders, então pré-candidato à presidência dos Estados Unidos, havia sido uma demonstração de apoio político. Francisco respondeu: “Isso se chama educação, não se imiscuir em política. Se alguém pensa que saudar é se imiscuir em política, recomendo que busque um psiquiatra”.
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