O Love Story de Doria e Mandetta
No domingo, depois da vacinação da enfermeira Mônica Calazans, a primeira brasileira a ser imunizada contra a Covid-19, o governador João Doria leu uma mensagem do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, defenestrado por Jair Bolsonaro por ter feito o óbvio em relação à pandemia: apoiado quarentenas, recomendado o distanciamento social e incentivado o uso de máscaras. A mensagem, lida por João Doria na sua apoteose vacinal, dizia o seguinte, resumidamente: “São Paulo, após a derrota das armas em 1932, optou pela vitória através da ciência...
No domingo passado, depois da vacinação da enfermeira Mônica Calazans, a primeira brasileira a ser imunizada contra a Covid-19, o governador João Doria leu uma mensagem do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, defenestrado por Jair Bolsonaro por ter feito o óbvio em relação à pandemia: apoiado quarentenas, recomendado o distanciamento social e incentivado o uso de máscaras.
A mensagem, lida por João Doria na sua apoteose vacinal, dizia o seguinte, resumidamente:
“São Paulo, após a derrota das armas em 1932, optou pela vitória através da ciência, criou a Universidade de São Paulo, a USP, em 1934, criou também o Instituto Butantan e hoje bebemos da fonte dos revolucionários paulistas de 32. Parabéns São Paulo. Como ex-ministro da Saúde e na qualidade digital, se eu pudesse estaria hoje em São Paulo, ao seu lado governador João Doria, aplaudindo o Butantan, aplaudindo a ciência. O tempo é o senhor da razão, os dias de trevas estão contados. Vamos em frente, somos do bem e o bem sempre vence.”
Como paulista, tive um arrepio de orgulho com o tom épico da mensagem. Felizmente, porém, ele passou logo, cancelado pelo realismo que insiste em não me abandonar. É próprio da política o apelo a imagens grandiloquentes, mas ali ocorria apenas o início da vacinação contra a Covid-19 — que é notícia a ser comemorada, não resta dúvida, mas que deve ser interpretada principalmente como o cumprimento de uma obrigação básica por quem foi eleito para cumprir obrigações básicas. Concordo que hoje em dia a obviedade precisa ser festejada, mas é preciso ir devagar com o andor.
Só quero dizer que se você, paulista ou não, emocionou-se com a patacoada histórica de Mandetta e toda a encenação de Doria e demais governadores na sequência — e ainda fica com lágrimas nos olhos com as reprises da coisa toda, mesmo que contra a vontade –, isso não o faz um boboca. Você não é. Num artigo da década de 1970, intitulado “As lágrimas do Corsário Negro”, o ensaísta e escritor italiano Umberto Eco, que a semiótica o tenha, explicou:
“Alguém, depois da projeção de Love Story, disse que seria preciso ter um coração de pedra para não explodir em risos diante dos casos de Oliver e Jenny (os dois protagonistas da história de amor com final infeliz). A piada, como todos os paradoxos à la Oscar Wilde, é soberba. Infelizmente, não espelha a verdade. De fato, não importa a disposição crítica com a qual se vê Love Story, seria preciso ter um coração de pedra para não comover-se e chorar. E mesmo tendo um coração de pedra, provavelmente não haveria como escapar do tribuno emocional que o filme exige. E isso por uma razão muito simples: os filmes desse gênero são concebidos para fazer chorar . E, assim, fazem chorar. Não se pode comer um doce fingindo sentir — só porque se tem uma vasta cultura e um forte controle da próprias sensações — sabor de sal. A química não erra nunca. Como existe também uma química das emoções, e um dos compostos que tradicionalmente suscitam emoções é um enredo bem pensado, se um enredo é bem pensado suscita as emoções que pretendia como efeito. Podemos depois nos criticar por as termos experimentado, ou crítica-las como emoções repulsivas, ou criticar as intenções com as quais foi pensada a máquina que as provocou. Mas essa é outra história, Um enredo bem temperado produz alegria, horror, piedade, risos ou choro.”
Produz também votos, uma vez que política eleitoral é enredo. É difícil escapar das emoções que os enredos político-eleitorais podem causar, mas devemos nos impor a obrigação de não nos deixarmos tomar por elas por um tempo maior do que o de um comercial de TV e racionalizar ao que assistimos. No caso específico, Mandetta e Doria querem protagonizar um Love Story com final feliz, pelo menos para eles. O primeiro como candidato a vice do segundo. E é bom para eles que a novela da vacinação seja estendida ao máximo, com Bolsonaro no papel que lhe é muito adequado de doença terrível a ser combatida com o heroísmo funcionário público.
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