O Magazine Luiza, a ilegalidade e a cota do bom senso
A decisão do Magazine Luiza de selecionar apenas candidatos negros para um programa de trainees causou mais uma briga nas redes sociais. Briga, não debate. De um lado, a Ku Klux Klan do politicamente correto, que linchou quem ousou discordar civilizadamente da medida tomada pela loja; de outro, a SA bolsonarista, que depredou vidraças com o argumento do "racismo reverso"...
A decisão do Magazine Luiza de selecionar apenas candidatos negros para um programa de trainees causou mais uma briga nas redes sociais. Briga, não debate. De um lado, a Ku Klux Klan do politicamente correto, que linchou quem ousou discordar civilizadamente da medida tomada pela loja; de outro, a SA bolsonarista, que depredou vidraças com o argumento do “racismo reverso”.
Não se discute aqui a boa intenção do gesto do Magazine Luiza, ainda que temperado com razoável dose de marketing. Ele está inserido no movimento de ações afirmativas que buscam compensar a população negra pelos séculos de escravidão e as sequelas socioeconômicas deixadas por essa monstruosidade. O que deve ser colocado em debate é a constitucionalidade e legalidade da decisão. A Constituição, no artigo sétimo, proíbe diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil. E não poderia ser mais cristalina a lei que regulamenta o preceito que proíbe qualquer tipo de discriminação no mundo do trabalho:
Ficará sujeito às penas de multa e de prestação de serviços à comunidade, incluindo atividades de promoção da igualdade racial, quem, em anúncios ou qualquer outra forma de recrutamento de trabalhadores, exigir aspectos de aparência próprios de raça ou etnia para emprego cujas atividades não justifiquem essas exigências.
Interpretar escravos na televisão, cinema ou teatro exige que os atores sejam negros, obviamente. Se a escrava for Isaura, no entanto, ela terá de ser branca. Para ser funcionário do Magazine Luiza, não há exigência necessária de aspectos de aparência próprios de raça ou etnia, como prevê a exceção prevista na lei. É evidente, portanto, que a decisão é ilegal.
O Magazine Luiza deu o passo amparado em pareceres de advogados. O terreno pisado, imagino, são convenções e legislações internacionais que preconizam ações afirmativas baseadas na “discriminação positiva”, bem como a sua interpretação no Brasil. O Supremo Tribunal Federal reconheceu, em 2012, a constitucionalidade do regime de cotas para negros em universidades, sob o argumento de que essa grande parcela de cidadãos, a maioria da população quando se incluem os que se autodeclaram pardos, jamais atingiria a igualdade prevista pela Constituição se continuasse alijada de frequentar os bancos universitários por motivos que independem da sua capacidade. Desde então, o regime de cotas vem se estendendo formal e informalmente em várias áreas, para combater iniquidades sociais e os seus substratos intoleráveis: o racismo e o sexismo.
O regime de cotas teve a sua legalidade condicionada à temporalidade e à proporcionalidade — como o próprio nome diz, é cota, não integralidade. Apesar de ser improvável que, uma vez provocado, o STF se disponha a considerar inconstitucional um programa para trainees que visa a preencher com pessoas negras cargos de direção de uma loja — temos ministros muito sujeitos a patrulha –, nada apaga o fato de a iniciativa do Magazine Luiza ferir o regime de cotas e ser amplamente discriminatório. Dela ficaram de fora outros grupos que também demandariam ações afirmativas, já que a diversidade não é apenas de negros e brancos. Ao optar tão somente pela cor da pele como critério de seleção, portanto, a loja está discriminando uma enorme quantidade de pobres, mulheres, indígenas, asiáticos, ciganos, deficientes físicos, gays, lésbicas e transexuais.
Não vou discutir o o mérito da efetividade de ações afirmativas. Noto somente que, ao contrário do que se pensa, elas não parecem ser capazes de transformar a sociedade, como mostram os Estados Unidos. Os seus defensores apontam como exemplo de sucesso o caso da Índia, onde elas nasceram para eliminar as castas. Pessoalmente, acho que o modelo indiano está mais para abolição de escravatura. O que funciona para cancelar o preconceito e diminuir dramaticamente as diferenças sociais nascidas dele é escola pública de boa qualidade para todos, como escrevi na Crusoé (artigo aberto para não assinantes). A escola pública de boa qualidade derrubaria barreiras, propiciaria convivências e forneceria a base necessária para que cada indivíduo desenvolvesse ao máximo as sua potencialidades e pudesse trilhar o seu caminho.
A boa escola pública é a cota do bom senso. O Magazine Luiza poderia adotar escolas públicas com prazo indeterminado, ou mais escolas públicas se já o faz, embora o marketing nesse caso seja menos eficiente.
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