Jerônimo Teixeira na Crusoé: O coach da contracultura
Por ora favorito na campanha para prefeito de São Paulo, o candidato do PRTB é o novo político “contra isso tudo que está aí"
Em sua coluna semanal para Crusoé, Jerônimo Teixeira escreve sobre a contracultura brasileira que hoje em dia se reflete no bolsonarismo, tornando o 8 de janeiro seu Woodstock.
Me dê um beijo meu amor
Eles estão nos esperando
Os automóveis ardem em chamas
Derrubar as prateleiras
As estátuas, as estantes
As vidraças, louças, livros, sim.
Caetano Veloso não gostava de É Proibido Proibir. A canção que toma como título e refrão um dos lemas dos protestos de maio de 1968 em Paris foi composta por sugestão de seu empresário, Guilherme Araújo. Caetano achava que o paradoxo da proibição à proibição era ingênuo, mas cedeu à insistência de Araújo. Também por sugestão do empresário, o cantor baiano apresentou a música desdenhada no Festival Internacional da Canção de 1968, promovido pela rede Globo. As roupas extravagantes, o americano careca que subia ao palco só para berrar, as guitarras elétricas dos Mutantes: a performance tropicalista que Caetano levou ao palco abespinhou a jovem esquerda nacionalista que formava boa parte do público. Caetano respondeu às vaias com uma diatribe que se tornou célebre – uma crítica ao mesmo tempo errática e certeira à “juventude que diz que quer tomar o poder”.
É Proibido Proibir hoje só é lembrada porque ficou associada a esse discurso furibundo. Mas os seis versos que transcrevi acima – carregados de “imagens de sabor anarquista”, como diz o próprio Caetano em Verdade Tropical – condensam bem o espírito de uma época nostalgicamente cultuada como revolucionária – a década dos Beatles e dos Rolling Stones, da cultura hippie, da psicodelia, da liberação sexual, do LSD, dos protestos contra a Guerra do Vietnam. O ímpeto de derrubar estátuas e bibliotecas define bem o que então se chamava genericamente de “contracultura”.
Hoje, quando ouço essa passagem da canção, me vem à mente uma imagem incômoda: um sujeito de camiseta preta estampada com a imagem de Jair Bolsonaro derruba um relógio do século XVII no chão do Palácio do Planalto.
Momento emblemático da orgia de vandalismo promovida pela Horda Canarinha em Brasília, a destruição do relógio Martinot foi um gesto contracultural. Perdido nos corredores do Planalto, o vândalo calhou de encontrar um relógio que precede a divisão do campo político entre direita e esquerda – era obra do francês Balthazar Martinot (1636–1714), relojoeiro de Luís XIV. Mas o sujeito, ao que parece, vive em um presente eterno. Não sabia nem queria saber da origem do relógio. Velhas quinquilharias acumuladas no palácio do usurpador esquerdista tinham de vir abaixo! A ordem (ou desordem) era derrubar prateleiras, estátuas, livros, relógios – e o governo eleito.
O bolsonarismo é a contracultura de nosso tempo. O 8 de janeiro foi seu Woodstock.
Tal como o trumpismo, sua matriz americana, o bolsonarismo veio se insurgir não só contra a esquerda, mas também contra uma direita que, na sua visão, combatia essa esquerda com punhos de renda. Toda a cultura política, pregavam seus adeptos, estava corrompida. Precisava ser reconfigurada aos moldes de uma imaginária era de bonança e progresso que o país teria vivido sob o coturno dos presidentes-generais. E essa restauração só seria possível com o capitão na presidência.
Na gestão da pandemia, na proteção ao meio ambiente, na relação com os demais poderes, no prometido combate à corrupção e até nos ensaios golpistas, o governo Bolsonaro acumulou fracassos. Conquistou, no entanto, uma vitória na guerra cultural: roubou da esquerda o lugar de força política anti-establishment. Contencioso, barulhento e sempre instagramável em seus grandes eventos, o bolsonarismo foi uma força demolidora, que alcançou o paroxismo em seu último (por enquanto) e monumental malogro: a intentona tonta do 8 de janeiro.
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