STF, Moro e a “compra” de liberdade com fiança STF, Moro e a “compra” de liberdade com fiança
O Antagonista

STF, Moro e a “compra” de liberdade com fiança

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Felipe Moura Brasil
41 minutos de leitura 10.06.2024 11:01 comentários
Análise

STF, Moro e a “compra” de liberdade com fiança

Estudo de caso sobre a manipulação dos fatos mostra que até a petista Gleisi Hoffmann já usou a expressão

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Felipe Moura Brasil
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STF, Moro e a “compra” de liberdade com fiança
Foto: Andressa Anholete/SCO/STF

A primeira preocupação jornalística e jurídica na avaliação de qualquer episódio é saber exatamente o que aconteceu.

A primeira preocupação política na avaliação de qualquer episódio tem sido descobrir como ele pode ser explorado por um lado contra o outro.

Na imprensa (onde também pesa a busca por cliques) e nos tribunais, além dos órgãos de fiscalização e controle, a preponderância da preocupação política sobre a preocupação jornalística e jurídica institucionaliza o obscurantismo, ambiente ideal para que o lado mais poderoso se imponha sobre o outro lado.

Esse ambiente é constituído pela manipulação dos fatos e da linguagem (formal e informal), das leis e dos direitos, da jurisprudência e da competência, não raro pelo uso de um expediente típico de militância virtual, que eu, Felipe, defini em 2015 como “Olha isso! Que vergonha!”: a exploração de falsas impressões, com afetações de repúdio moral sobre conteúdos jamais examinados.

Moro e Gilmar

O caso da fala de Sergio Moro envolvendo Gilmar Mendes é ilustrativo.

Entre a divulgação de um corte de vídeo em rede social no começo de abril de 2023 e a decisão tomada pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal em 4 de junho de 2024 de tornar Moro réu por calúnia, a exposição integral do que aconteceu foi sistematicamente sonegada na TV, na Procuradoria-Geral da República e no STF.

Como a exposição rende informações, deduções lógicas e reflexões fundamentais não só para a análise do mérito na ação penal, mas também sobre as armadilhas do debate público e das formas veladas de autoritarismo atualmente, vale a pena esmiuçar o caso desde a sua raiz.

Por mais ridículo que ele seja.

  1. A postagem do corte

O corte de vídeo que resultou na denúncia da PGR foi publicado no X, ex-Twitter, por um militante virtual que, na tentativa de precaver-se contra críticas à edição, comentou em cima:

“Será que ele vai falar que o vídeo foi manipulado?

Acusar um ministro do STF de vender habeas corpus, é uma acusação séria.”

O print da postagem original de abril de 2023 seria encaminhado pela defesa de Moro à ministra Cármen Lúcia, relatora do caso no STF, em 26 de maio de 2023.

Militante virtual

Quem, em primeiro lugar, insinuou que o ex-juiz acusou Gilmar de vender HC, portanto, foi um militante virtual que não sabe sequer usar a vírgula. Foi ele que deu expressão à narrativa ecoada na TV, na PGR e no Supremo.

Na era das redes sociais, a forma como se dá expressão a conteúdos audiovisuais, seja em títulos, legendas ou comentários, influencia a parcela do público desprovida de preocupações com o exame técnico das fontes primárias e a descrição precisa dos fatos objetivos.

A aparente combinação entre frases feitas e imagens divulgadas chega a ter impacto e repercussão mundiais, mesmo quando a descrição conjunta é absolutamente falsa, como no caso do hospital Al-Ahli, em Gaza.

O que é manipulação?

Manipulação é a falsificação da realidade que busca induzir alguém a pensar de determinada forma. Em relação a vídeos, ela não se restringe à interferência direta nas imagens ou no áudio por meio da troca de ‘frames’ e falas originais, mas abrange também omissão e/ou falseamento do contexto em que apareceram.

Dois exemplos extremos, de fácil compreensão:

  • Se uma pessoa cita um nazista pregando o extermínio de judeus, e alguém publica um corte do vídeo apenas com a pregação (sem referência e aspas) para acusar a pessoa de nazista, não houve manipulação das imagens e do áudio dentro do trecho exibido; mas houve omissão e falseamento do contexto, obviamente manipulado.
  • Na ordem inversa: se alguém acusa um homem de violentar uma mulher na rua, apontando corte de vídeo que o mostra empurrando a alegada vítima contra a calçada, mas outro vídeo mostra que o empurrão foi dado para salvar a mulher de um atropelamento, houve também omissão e falseamento do contexto.

Segundos

Um corte de vídeo de poucos segundos, em circunstâncias nele não esclarecidas, pode passar impressões erradas sobre a conduta dos envolvidos, inclusive incriminando-os injustamente, sobretudo quando acompanhados de texto neste sentido.

A mera publicação, portanto, impõe a análise separada e comparada do corte e do texto, bem como a busca por circunstâncias faltantes, para fins de elucidação dos fatos.

Não foi isso que aconteceu no caso Moro.

A imprensa repercutiu sua fala no corte como acusação de venda de sentença; Gilmar acionou a PGR em 14 de abril de 2023 para que o ex-juiz fosse processado criminalmente; e a PGR denunciou Moro três dias depois, em 17 de abril, por calúnia contra o ministro do STF.

A tentativa de intimidar a crítica à edição do vídeo divulgado (“Será que ele vai falar que o vídeo foi manipulado?”) funcionou. Por não ter havido manipulação interna no corte, atropelou-se a hipótese de contexto manipulado.

A expressão dada à fala de Moro (“Acusar um ministro do STF de vender habeas corpus”) também funcionou, porque se atropelou até mesmo o exame do conteúdo do corte.

  1. O conteúdo do corte

No corte originalmente vazado, com duração de oito segundos, uma mulher fora de quadro diz a Moro, em tom de troça, que o ex-juiz, já sorridente naquele momento e esticando o braço para receber um copo de bebida cheio, “tá subornando o velho!”

Apenas o braço de outro homem, aparentemente o “velho” citado e de quem se ouve uma risada, aparece em quadro, entregando o copo na mão de Moro.

O ex-juiz então responde, também em tom de troça: “Não, isso é fiança… o instituto… pra comprar um habeas corpus do Gilmar Mendes.”

Uma mulher fora de quadro, supostamente a mesma, chega a comentar em tom irônico: “Não, tá muito…” Mas o corte termina, sem o complemento da frase.

O ângulo da filmagem, centrada em Moro e voltada da beira de um jardim para fora, não permite identificar um evento específico, mas apenas, ao fundo, cerca de sete pessoas dispersas, não envolvidas na conversa, incluindo um adulto de máscara andando de mão dada a uma menina; uma pequena construção de madeira; árvores; muro; e dois carros estacionados em terreno próximo. Todas as pessoas aparecem agasalhadas, inclusive Moro.

  1. O exame do conteúdo do corte

3.1

Acusar Moro de cometer calúnia contra Gilmar no diálogo do corte é como acusar a mulher fora de quadro de cometer calúnia contra Moro.

A diferença é que a declaração de que Moro estava “subornando o velho” rendeu risos do ex-juiz e do suposto “velho”, ao passo que a resposta de Moro rendeu representação de Gilmar, denúncia e banco dos réus.

A provocação a que Moro respondia, portanto, já envolvia o verbo subornar, usado em contexto nitidamente lúdico.

Não é possível concluir se a contrapartida do “suborno” (que a mulher acusava em tom de troça) seria o copo de bebida e/ou alguma ajuda anterior do suposto “velho” a Moro. Ou se outra pessoa já havia ajudado o ex-juiz segundos antes do trecho exibido no corte.

Deduz-se, porém, que, para ser alvo de uma acusação lúdica de “suborno”, Moro havia oferecido algo a alguém em troca de alguma coisa e/ou de alguma ajuda.

3.2

Considerando que o ex-juiz respondia rindo a uma provocação sobre “suborno”, levar ao pé da letra cada uma das expressões de sua fala já é temerário, porque a troça pressupõe uma licença temporária para a encenação.

Ainda assim, o que Moro faz é justamente negar o “suborno”, dizendo “não”.

Depois, ele diz: “isso é fiança… o instituto…”

“Instituto”

Assim como Gilmar é fundador de um instituto, o IDP, alvo de questionamentos sobre patrocínios e conflitos de interesse do ministro, a citada fiança, em linguagem jurídica, é um instituto, como sabe qualquer ex-juiz.

Sem especificação, o exame do sentido de “instituto” neste contexto se torna, na pior das hipóteses, inconclusivo, embora a palavra avulsa, sem nome de instituição, fique mais próxima (em sentido e na frase) do instituto jurídico da fiança, até porque o trecho anterior é um “não” ao suborno que a menção a um instituto legal só reforça (“não, é a fiança… o instituto…); e o trecho posterior, “pra comprar”, também reforça a conexão com ela: “isso é fiança… o instituto… pra comprar…”

Somente esse sentido da palavra “instituto” mantém completo o sentido da frase inteira.

Não havendo referência ao IDP, impossível para fins jornalísticos e processuais é cravar que Moro se referiu ao instituto ligado a Gilmar, insinuando que ele seria utilizado para lavagem de dinheiro de um suposto suborno.

Para tamanha elasticidade interpretativa, seria preciso descartar a expressão “isso é fiança”, inferir que a frase teve uma mudança repentina e definitiva de rumo, ignorar a ambiguidade da palavra “instituto”, e ainda enxertar uma porção de verbos e especificações ausentes da fala.

Seria preciso, portanto, manipular, notadamente para incriminar e punir.

3.3

Resta, assim, a combinação do que vem antes e depois na fala jocosa, mantendo-se o sentido da sua construção: “isso é fiança… pra comprar um habeas corpus do Gilmar Mendes”.

Primeiro, os conceitos resumidos.

O que é fiança?

  • Fiança é uma caução prestada pelo imputado para responder o processo criminal em liberdade. Ela serve para eventual pagamento de multa, de despesas processuais e de indenização à vítima em caso de condenação judicial transitada em julgado (ou seja, definitiva).

A fiança constitui uma das medidas cautelares diversas da prisão, cabível quando não estão presentes os requisitos para prisão temporária ou preventiva.

Ela é concedida pelo delegado (nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 anos) ou pelo juiz (nos demais casos), não podendo ser decretada nos crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e nos definidos como crimes hediondos; nem nos crimes cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.

O delegado pode arbitrar o valor da fiança de 1 a 100 salários mínimos por crime. O juiz, de 10 a 200. Ambos, portanto, podem condicionar a liberdade provisória ao pagamento da guia no valor da fiança determinada, seja em dinheiro, seja em objetos. A fiança paga é depositada em juízo. Quanto maior a gravidade e a quantidade de delitos cometidos, maior pode ser seu valor.

O beneficiário da fiança fica obrigado a, entre outras coisas, comparecer à presença da autoridade todas as vezes em que for suscitado.

O que é habeas corpus?

  • Já habeas corpus (HC) é um instrumento processual para garantir a liberdade, quando esta estiver ameaçada por abuso de poder ou ato ilegal, ou quando a pessoa for presa ilegalmente.

Por exemplo: quando a lei permite a fiança no caso específico, mas a liberdade condicionada a seu pagamento não foi concedida, a defesa do imputado pode entrar na Justiça com pedido de habeas corpus.

A decisão de conceder HC cabe a juízes, desembargadores ou ministros de tribunais superiores, podendo ser monocrática (individual) ou colegiada (coletiva).

A jurisprudência do STJ, ademais, considera constrangimento ilegal manter a prisão preventiva unicamente pela falta de pagamento da fiança, quando há indícios de que o acusado não tem condições econômicas de fazê-lo.

3.4

Agora, o exame da fala remanescente.

  • O que é a fiança referida por Moro, ao dizer “isso é fiança”?

“Fiança”

No corte de vídeo, o ex-juiz não define, não especifica, não aponta, nem aparece segurando qualquer recurso real ou lúdico que pudesse ser visto como um valor de fiança. Não há nota de dinheiro, nem cartão, nem ficha, nem tíquete. Sua mão esquerda está vazia e a direita sai vazia do bolso da calça para segurar o copo.

Só há referência, portanto, ao instituto da fiança, ainda que se despreze o uso posterior da palavra “instituto”. A palavra “fiança” é usada de modo genérico, sem qualquer valor associado a ela. E a preposição “pra” (abreviação de “para”) torna o restante da frase (“comprar um habeas corpus do Gilmar Mendes”) indiscutivelmente atrelado ao instituto jurídico da fiança.

Ademais, ainda que houvesse referência pecuniária na fala, a fiança pressupõe que alguém use legalmente o próprio dinheiro, ou objetos pessoais, para fazer um depósito do valor arbitrado por delegado ou juiz.

  • O que significa fiança “pra comprar” HC?

Eis a questão principal.

Como fiança é um instituto legal e o depósito de seu valor, uma vez arbitrado por delegado ou juiz, resulta na liberdade provisória, nenhum pagamento de fiança configura um suborno.

Repito: nenhum pagamento de fiança configura um suborno.

Não existe suborno consumado mediante fiança, porque fiança não é pagamento ilegal nem subentende recurso ilícito.

Se um valor é usado para subornar um juiz, desembargador ou ministro de tribunal superior, não se trata de fiança, mas de propina.

No debate público, o que é comum é o entendimento – decorrente de visão crítica – de que a fiança, em determinados casos, serve ou serviu para “comprar” a liberdade de alguém.

Isto não torna o seu depósito um suborno!

Daniel Alves

Foi o que aconteceu, por exemplo, no caso de Daniel Alves, jogador acusado de estupro que teve sua liberdade concedida após depositar 1 milhão de euros (cerca de R$ 5 milhões) à Justiça de Barcelona.

“Para mim, é um escândalo que deixem uma pessoa, que eles sabem que pode obter 1 milhão de euros num instante, sair em liberdade”, disse a advogada da vítima, Ester Garcia, a uma rádio catalã. “Está sendo feita justiça para os ricos.”

Irene Montero, ex-ministra de Igualdade da Espanha e autora de uma lei pela qual o jogador foi julgado, foi direto ao ponto:

“Os homens poderosos podem comprar sua liberdade”, declarou.

Como Daniel Alves ficou rico com o futebol e podia pagar, muitos espanhóis e brasileiros também criticaram, na imprensa e nas redes sociais, o instituto da fiança e a sua concessão, que permitiram ao jogador responder o processo fora da prisão. Rendeu, inclusive, matéria em coluna de portal de Brasília com o título: “Afinal, Dani Alves ‘comprou’ a liberdade dele? Especialistas explicam o caso”.

O comentarista esportivo Paulo César Vasconcellos chamou atenção na TV para a “repercussão mundial” da decisão, que gerou “revolta” porque “precificou o estupro”: “o estupro agora custa 1 milhão de euros”.

Lula e Gleisi

Até Lula, que tem Moro como alvo de vingança, usou o verbo “comprar” ao fazer sua crítica:

“O dinheiro que o Daniel Alves tem, o dinheiro que alguém possa emprestar para ele não pode comprar a ofensa que um homem faz a uma mulher participando de um estupro.”

A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, foi ainda mais direta no uso do verbo “comprar” ao lembrar o caso do jogador, quando comentou o de outro, já condenado:

“Robinho foi preso e cumprirá pena no Brasil por estupro coletivo. Justiça com gosto amargo, no momento em que Daniel Alves comprou sua liberdade, num mundo onde mulheres são abusadas todos os dias, violentadas em todos os lugares. Enquanto houver vítimas continuaremos lutando! Lutaremos até que todos aprendam a nos respeitar. Hoje, a justiça está sendo feito [sic].”

Repito: a petista Gleisi Hoffmann, que vocifera há anos contra Moro, afirmou expressamente que “Daniel Alves comprou sua liberdade”. A liberdade provisória do jogador foi concedida em decisão tomada por dois juízes da Audiência Provincial de Barcelona, contra o voto vencido de um terceiro. Alguém acusou Gleisi de calúnia contra os dois? Tampouco deveria, claro.

Condutor do Porsche

Também houve repercussão negativa no caso do empresário Fernando Sastre de Andrade Filho, condutor do Porsche que, em março, provocou um acidente, matou o motorista de app Ornaldo da Silva Viana e feriu seu amigo. Ele pagou fiança de R$ 500 mil imposta pela Justiça para não ser preso. “Se tem R$ 500 mil, pode sair matando por aí”, comentou Datena.

Em 2011, em caso similar, o engenheiro Marcelo Malvio de Lima pagou fiança de R$ 300 mil por sua liberdade provisória. Lima dirigia um Porsche que se envolveu em acidente no qual morreu a advogada Carolina Menezes Cintra Santos. Naquele ano, já havia uma porção de comentários no então Twitter, apontando, em razão do depósito, que o dinheiro “compra a Justiça”, “compra tudo” – assim como ocorreu em 2022, quando a suspeita de atropelar e matar a modelo e passista Luisa Lopes recebeu liberdade provisória após pagar fiança.

A crítica à fiança como “compra” de liberdade é comum, inclusive, em veículos que atacam Moro. Em 2020, uma revista de esquerda, cujo editor é pautado por Lula, publicou o artigo de um colunista, sob o título: “Quanto custa uma liberdade?” Subtítulo: “As fianças para soltura são um marco da desigualdade que atravessa os presos pobres e miseráveis”. No primeiro parágrafo já se lê que a liberdade “pode ser efetivamente comprada e o recibo dessa aquisição é uma guia de depósito judicial”.

Status econômico

A discussão é mundial. A ACLU (União pelas Liberdades Civis Americanas, na sigla em inglês), de Indiana, nos EUA, publicou em 2022 o seguinte posicionamento: “O status econômico não deve determinar sua liberdade”. No texto se lê: “Os defensores da fiança em dinheiro afirmam que este sistema torna mais provável que você compareça ao tribunal. No entanto, sabemos que soluções simples como lembretes judiciais e assistência de transporte muitas vezes alcançam esse objetivo, sem forçar as pessoas a comprar a sua liberdade.”

Nenhum desses casos em que se atribuiu à fiança uma “compra” de decisão judicial pela liberdade gerou a interpretação de que os respectivos juízes receberam suborno para conceder o HC.

Nenhum.

Repito: nenhum.

Nem era para gerar, obviamente. Concorde-se ou não com a crítica em cada caso, a liberdade de expressão para apontar com palavras duras que um instituto legalizado gera privilégios imerecidos é garantida pela Constituição em
qualquer país pretensamente democrático.

Com efeito, a percepção simplificada de que a fiança compra a liberdade vem se impregnando na linguagem informal das pessoas no Brasil e no exterior, em especial quando estão indignadas, ou à vontade, fazendo troça.

3.5

Para aventar a mera hipótese de referência a um suborno real na fala jocosa de Moro, é necessário ignorar, primeiro, o “aninus jocandi” (intenção de brincar), que, como prega doutrina de João Paulo Capelotti, “descaracteriza a intenção dolosa de ofender (animus injuriandi) exigível para a configuração do ato ilícito”.

Mas também é necessário um outro tipo de manipulação: desatrelar do final da frase o seu começo, destacando apenas que Moro falou em “comprar um habeas corpus de Gilmar Mendes”, sem mencionar que “é fiança… pra” isso.

Depois, é preciso manipular novamente o significado do trecho pinçado, para extrair do infinitivo do verbo “comprar”, que remete a um suposto plano ainda não concretizado do autor dessas palavras (portanto, a um possível ato futuro de Moro), uma afirmação categórica de que o ministro citado “vende” (no presente) ou já “vendeu” (no passado) alguma sentença – palavras jamais mencionadas na fala.

Depois, ainda é preciso fingir que essa menção genérica de plano de ato pessoal futuro envolvendo o outro, transformada em afirmação sobre ato do outro no presente e/ou no passado, configura uma acusação de suborno, mesmo não havendo qualquer elemento de especificação, ou fato determinado, sobre o suposto crime cometido.

Foi o que fizeram parte da imprensa e a PGR.

Repito: sem sequer apurar as circunstâncias. Sem haver na fala jocosa de Moro qualquer atribuição de ato cometido por Gilmar (que dirá criminoso, que dirá específico) que seja estranho ao cargo de julgador, com atribuição, esta sim subentendida, para conceder HC – a mesma atribuição de todos os juízes do mundo criticados por “venderem” liberdade quando a concedem sob fiança.

3.6

Mais do que isso:

“Gilmar Mendes é o ministro que deu mais HCs desde 2009”, como foi noticiado em 2020 pelo Estadão, com base em levantamento do jornal, repercutido no UOL e no Correio Braziliense.

Em 2018, com base em informações da Agência Brasil, o Poder360 havia destacado em título:

“Gilmar ordenou 21 solturas na Lava Jato em menos de 30 dias”.

Outro levantamento, feito em parceria com o próprio IDP, fundado por Gilmar, rendeu matéria em 2021 no Globo, com o seguinte subtítulo:

“Gilmar Mendes foi o ministro que mais concedeu habeas corpus no período [entre 2018 e 2019]: 478 vezes. Maior parte das decisões foram tomadas de forma monocrática”.

Até um portal jurídico alinhado a Gilmar e onde o ministro publica artigos registrou na ocasião:

“O ministro Gilmar Mendes é quem tem a maior média de concessão de Habeas Corpus”.

Ao se falar em HC, portanto, é natural falar em Gilmar, o recordista no ramo. Que se critique ou brinque com este fato objetivo, também.

Esse tipo de decisão ficou associada ao ministro do STF em razão, também, de diversos casos que renderam pedidos de suspeição, críticas, ironias e memes, incluindo sua imagem em caixa de medicamento. “Laxante Gilmar! Tá preso? O Gilmar solta!”, destacou em 2017 o jornalista humorístico José Simão, no UOL.

No fim daquele ano, por exemplo, o ministro mandou soltar pela terceira vez o empresário Jacob Barata Filho, cuja filha é afilhada de casamento do próprio Gilmar.

O HC foi concedido apesar dos pedidos de suspeição do ministro, feitos pelo Ministério Público Federal do Rio de Janeiro (MPF-RJ) e pela PGR.

3.7

Os órgãos apontavam ainda que Gilmar e Barata tinham o mesmo advogado, Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch.

É o mesmo advogado do tucano Beto Richa, alvo de decisões de Moro na Lava Jato que Gilmar mandou soltar em 2018. É o mesmo advogado que, para defender Richa, fez acusações contra a conduta de Moro como juiz com base em conteúdo não autenticado de mensagens roubadas por hackers.

Para completar:

É o mesmo advogado de Gilmar que fez, em 14 de abril de 2023, a representação contra Moro na PGR por alegada calúnia, sob procuração assinada pelo ministro naquele mesmo dia.

3.8

Em relação ao instituto da fiança, também houve concessões controversas de Gilmar, inclusive em desdobramento da Lava Jato no Rio de Janeiro. Até a então procuradora-geral da República Raquel Dodge reagiu.

Em 2019, Crusoé publicou a matéria:

“Gilmar estipula fiança para doleiro da JBS foragido”.

Três dias depois, Crusoé publicou:

“Dodge critica decisão de Gilmar de estipular fiança a doleiro foragido”.

Francisco Muñoz Melgar, conhecido como Paco, também atuava para a Odebrecht. O valor arbitrado ficou em R$ 3 milhões.

Gilmar ainda mandou soltar outros doleiros sob fiança, como Nissim Chreim – neste caso, o valor estipulado foi de R$ 5 milhões.

Ainda que alguém dissesse, e Moro não disse, que pessoas como essas “compraram” sua liberdade mediante fiança, ou que a fiança “comprou” a liberdade de pessoas como essas, trata-se não de acusação de suborno, mas de evidente linguagem informal, percepção simplificada ou crítica legítima à concessão de medida cautelar definida em instituto legal – crítica essa, feita em diversos países democráticos em casos afins.

  1. O exame da denúncia da PGR

A relatora Cármen Lúcia leu em 4 de junho de 2024, na Primeira Turma do STF, o trecho principal da denúncia contra Moro por alegada calúnia, assinada em 17 de abril de 2023 pela então vice-PGR Lindôra Maria Araújo, três dias após representação de Gilmar, em 14 de abril.

“A Procuradoria-Geral da República sustentou que…”, começou Cármen Lúcia, pulando em seguida “Em data, hora e local incertos”, trecho que iniciava, no texto original, o parágrafo lido.

Como o trecho é repetido adiante, com a expressão “não sabidos” no lugar de “incertos”, ele acabou sendo lido apenas uma vez – e bem rapidinho – em vez de duas, o que reforçaria na sessão transmitida ao vivo a inépcia da denúncia, depreendida da jurisprudência do STF que inclui decisão anterior do próprio Gilmar contra “denúncia imprecisa, genérica e vaga”.

Reproduzo e examino abaixo os parágrafos originais da então vice-PGR, visivelmente desprovidos da devida apuração e do devido exame dos fatos e das suas circunstâncias:

“Em data, hora e local incertos, o denunciado SERGIO FERNANDO MORO, com livre vontade e consciência, caluniou o Ministro do Supremo Tribunal Federal GILMAR FERREIRA MENDES, imputando-lhe falsamente o crime de corrupção passiva, previsto no artigo 317 do Código Penal, ao afirmar que a vítima solicita ou recebe, em razão de sua função pública, vantagem indevida para conceder habeas corpus, ou aceita promessa de tal vantagem.”

Moro, como vimos, jamais afirmou tal coisa.

“Segundo restou apurado, durante um evento realizado em dia, hora e local não sabidos, diante de um grupo de diversas pessoas, SERGIO FERNANDO MORO, ciente da inveracidade de suas palavras, afirmou que: ‘Não, isso é fiança, instituto… pra comprar um habeas corpus do Gilmar Mendes’, acusando falsamente a vítima de, em razão de sua função jurisdicional, negociar a compra e a venda de decisão judicial para a concessão de habeas corpus.”

Se “restou apurado”, quem apurou? Não há qualquer elemento de apuração da PGR no texto da denúncia. Nenhum. Zero.

A acusação apenas ecoa a postagem de um militante em rede social, formalizando a narrativa fabricada a partir de um corte de vídeo. Ecoa também, claro, a representação da defesa de Gilmar.

A menção igualmente vaga a “um grupo de diversas pessoas” diante do qual Moro fez a afirmação corrobora a inépcia da denúncia e a tentativa sorrateira de turbiná-la, pois só é possível cravar que duas pessoas ouviram a fala de Moro: a mulher fora de quadro e o suposto “velho” cujo braço aparece entregando o copo.

Dela se ouve a troça anterior (“tá subornando o velho!) e o tom posterior de troça (“não, tá muito…”). Do suposto “velho” se ouve uma risada. São interlocutores envolvidos em diálogo de ânimo jocoso, divertindo-se com a situação.

“A manifestação caluniosa proferida por SERGIO FERNANDO MORO foi dirigida a agente público maior de 60 (sessenta) anos de idade.”

Lindôra – que demonstrou não ter examinado a fala de Moro – se refere a Gilmar, que no fim de 2024 completa 69 anos e pode ficar no STF até o fim de 2030, quando atingirá o limite de 75 anos.

“O denunciado SERGIO FERNANDO MORO emitiu a declaração em público, na presença de várias pessoas, com o conhecimento de que estava sendo gravado por terceiro, o que facilitou a divulgação da afirmação caluniosa, que tornou-se pública em 14 de abril de 2023, ganhando ampla repercussão na imprensa nacional e nas redes sociais da rede mundial de computadores.”

“Diversas pessoas”

Após “diversas pessoas”, temos ainda “várias pessoas” referidas pela vice-PGR, que não identificou nem ouviu qualquer uma das… duas.

Lindôra não tinha como atribuir a Moro a publicação do corte de vídeo, nem a repercussão dele nas redes sociais e na imprensa, porque, de fato, não foi o ex-juiz que tornou público nem repercutiu o diálogo privado, então ela precisou afirmar que Moro “facilitou a divulgação” em razão do “conhecimento de que estava sendo gravado por terceiro”. A denúncia é tão carente de investigação anterior que mesmo esse “conhecimento” é apenas presumido pela visualização, não apurado.

Não se ignora, aqui, que a pessoa responsável pela filmagem, supostamente a mulher fora de quadro, provavelmente estivesse filmando Moro com o celular na mão de modo perceptível ao ex-juiz, mas é dever da PGR investigar minimamente um episódio para descartar hipóteses legítimas, mesmo as mais improváveis, como a de que a câmera fosse imperceptível à pessoa filmada, como costuma ser qualquer bodycam. Ninguém foi ouvido antes da denúncia. Repito: ninguém.

A vice-PGR, ao citar a “ampla repercussão na imprensa nacional”, colocou link para matéria do site da Veja de sexta-feira, 14 de abril de 2023, que repercutiu o corte que circulava nas redes sociais “desde a noite desta quinta-feira”, 13.

É a mesma matéria citada por Gilmar e por seu advogado, Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch, na procuração e na representação, respectivamente, ambas anexadas à denúncia.

Título: “Em vídeo, Sergio Moro fala em compra de habeas corpus de Gilmar Mendes” – uma manchete atraente que, assim como o lead da matéria, no entanto, omite a vinculação da “compra” à fiança.

Como o lead ao menos registra que Moro aparece fazendo “piada” com uma “possibilidade”, em “gravação” que “dura apenas oito segundos”, Lindôra precisou fechar os olhos até para o primeiro parágrafo.

Ela pediu condenação, com pena de mandato, caso aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a quatro anos. Ou seja: havia – e ainda há – até mesmo risco de prisão.

Foi nesse momento que eu, Felipe, fiz a apuração que a vice-PGR não fez.

  1. O vídeo sonegado

Horas após a denúncia de 17 de abril, revelei no X um vídeo filmado no mesmo evento, este sim mostrando a decoração e os adereços que permitiram concluir que era uma festa junina.

Nele, uma mulher fora de quadro explica a Moro e sua esposa, Rosangela, a brincadeira de “prisão” realizada em outro local do evento.

“Você entendeu? Você vai para a prisão! Se alguém vai lá e dá cincão, você fica mais dez minutos, já pensou? Vamos deixar você encarcerado até o final! Não é uma boa ideia.”

“Vamos ver o que é que eu negocio”, responde Moro, saindo da animada roda de conversa e tomando o rumo do local da “prisão”. Negociar, claro, remete a acertos financeiros.

“Cincão”, depreende-se pelo exemplo citado, é uma quantia que qualquer convidado podia pagar para manter por mais dez minutos o “preso” na área ou barraca da brincadeira.

Também se deduz, portanto, que a acusação jocosa ouvida no corte original, “tá subornando o velho!”, combina perfeitamente com o fato de que a brincadeira envolvia o pagamento de valores, seja por mais tempo de pena alheia, seja pela própria libertação. Moro, que seria “encarcerado até o final”, teria, assim, “comprado” do “velho” a sua liberdade.

Se na brincadeira esse ato de “compra” foi motivo de discussão jocosa sobre violação ou não das regras, fato é que, no mundo real, a fiança é legal, ainda que alvo de críticas.

Todo esse contexto tornou a fala do ex-juiz ainda mais distante do crime de calúnia, porque a referência à “fiança… pra comprar” liberdade, que já se mostrava um modo comum de se referir criticamente a um instituto legal, agora ganhou ares e contornos inteiramente lúdicos: a fiança compraria de Gilmar um HC de “prisão” de festa junina.

Não é crime vender HC de “prisão” de festa junina, nem acusar alguém de fazer isso, muito menos manifestar o plano de comprá-lo de um ministro do STF, habituado a conceder HC real. Que dirá se tudo está atrelado a uma “fiança”.

Curiosamente, o vídeo que eu, Felipe, revelei, foi sonegado na TV e na sessão em que a Primeira Turma do STF recebeu a denúncia inepta, com votos de Flávio Dino (foto), Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin e Luiz Fux, todos acompanhando a relatora Cármen Lúcia.

  1. Os malabarismos da Primeira Turma

6.1

Diante da argumentação da defesa de Moro de que a festa junina ocorreu provavelmente em meados de 2022, quando o ex-juiz ainda não era senador e portanto não tinha o foro privilegiado que impõe a competência do STF, a relatora Cármen Lúcia alegou o seguinte:

“Os fatos que aqui são identificados como tendo acontecido em 2022, ou o fato especificamente, vêm a ser divulgado, e isso aqui precisa de ser devidamente comprovado, quando ele já era senador e por isso é que teria se firmado a competência do Supremo Tribunal.”

Ou seja: para manter o caso no STF e depois aceitar a denúncia contra Moro, Cármen Lúcia alegou que vale o momento da divulgação do corte – divulgação esta que não foi feita por Moro; momento este que ainda “precisa de ser devidamente comprovado” e do qual, portanto, nem o STF tem certeza (até porque o corte pode ter viralizado a partir de uma conta, mas já ter sido publicado antes por outra).

Mas a relatora enfatizou em seguida, como se não tivesse dito o que acabara de dizer:

“É possível constatar, no caso, que o conteúdo do vídeo no qual o denunciado teria emitido as ofensas à honra do ministro Gilmar Mendes tornou-se público quando já era senador da República, no exercício do cargo, o denunciado.

Como a publicação do vídeo fez-se durante o exercício do cargo, a prerrogativa teria sido atraída, portanto, para este Supremo Tribunal Federal, nos termos da alínea b, inciso I, do artigo 102 da Constituição da República.”

A referida alínea diz apenas que compete ao STF processar e julgar membros do Congresso Nacional, entre outras autoridades, no caso de infrações penais comuns. Moro foi eleito no fim de 2022 e tomou posse em janeiro de 2023.

Quanto ao momento da consumação do crime de calúnia, a jurisprudência é no sentido de que ele se consuma quando um terceiro, que não o ofendido, toma conhecimento do fato alegadamente calunioso.

Se a própria PGR apontou que Moro falou diante de “diversas pessoas”, “várias pessoas”, ainda que fossem apenas duas, incluindo a que filmava, não teriam sido elas as terceiras? Se sim, valeria o momento em que Moro não tinha foro no STF e, com isso, o caso teria de ser encaminhado à primeira instância da Justiça.

Há margem para discussão jurídica neste ponto, mas, se a própria PGR inferiu que Moro “facilitou a divulgação” em razão do “conhecimento de que estava sendo gravado por terceiro”, como se pode considerar a consumação do suposto crime como o momento da divulgação, e não da fala ouvida e filmada, quando esta (a fala) é que foi feita pelo autor, não aquela (a divulgação, feita por um militante virtual)?

Esse entendimento jamais expresso em lei, mas adotado pela Primeira Turma, uma vez consolidado permite que militantes virtuais que detêm gravações de falas com potencial polêmico envolvendo políticos em pré-campanha ou campanha, por exemplo, possam escolher o momento da publicação, avaliando em qual tribunal seus objetivos políticos tem mais chances de serem alcançados.

“Eu estou, portanto, pelo menos agora, considerando os dados que se tem nos autos, rejeitando a preliminar de incompetência de Supremo”, disse Cármen Lúcia.

Se, para fins de competência do STF “pelo menos agora”, Moro é considerado senador no momento da alegada consumação do suposto crime de calúnia, para fins de enquadramento da fala ele não foi coberto pela imunidade parlamentar de senador, já relativizada também pelo Supremo nos casos convenientes que o próprio STF considera não conectados com o desempenho da função legislativa.

É a soma dos puxadinhos.

6.2

O ministro Flávio Dino, indicado por Lula ao STF, ainda reforçou a hipótese de alteração futura do entendimento da Primeira Turma sobre o momento temporal da consumação do suposto crime, ao comentar a “metáfora” das relações conjugais usada pelo advogado de Moro, Luis Felipe Cunha, para criticar a denúncia da PGR.

Segundo Cunha, “com todas as vênias à Procuradoria, a denúncia apresentada é divorciada por completo da lei, é desquitada da jurisprudência desta Casa, separada dos fatos e cindida conjugalmente do bom senso”.

Reproduzo e examino abaixo a fala de Dino:

“Utilizando da metáfora do eminente advogado, quando ele fala de divórcio, normalmente as pessoas casam e demoram algum tempo para se divorciar. É muito raro que a pessoa case de manhã e que se divorcie de tarde.

Ou seja, no caso da ação penal, existe a dilação probatória. E o juízo inicial que é feito é exatamente para propiciar esse tempo, a fim de que se confirme ou não a hipótese do ilustre advogado de que haveria um divórcio entre a peça acusatória e os fatos, tal como efetivamente ocorreram.”

Na verdade, é muito raro que a pessoa case num dia e se divorcie três dias depois, tempo levado pela vice-PGR para denunciar Moro após a representação de Gilmar. Talvez por isso a representação de 14 de abril de 2023 e a denúncia de 17 de abril daquele ano estivessem tão “casadas” no seu conteúdo, desprovido de qualquer exame. E é da inépcia da denúncia que o advogado de Moro tratou em sua “metáfora”, não do tempo futuro no âmbito da ação penal.

Entre a peça acusatória da vice-PGR e aquela sessão da Primeira Turma do STF, realizada em 4 de junho de 2024, transcorreu um período de 1 ano, 1 mês e 18 dias. Ou 413 dias em que pesou contra Moro o status de denunciado.

O truque retórico de Dino consistiu em ignorar o dever não cumprido pela PGR de apurar e esclarecer os fatos, e em defender que Moro vire réu, sob a promessa de que ainda haverá tempo para o suposto esclarecimento, mesmo depois de 416 dias em que nada foi examinado pela PGR, nem pela Primeira Turma do STF.

É como se dissesse: vai sendo denunciado e virando réu aí; os fatos, a gente vê depois.

Essa postura vai contra o que o próprio Gilmar defendeu em sua já citada decisão anterior (INQ 3752/DF) contra “denúncias genéricas, que não descrevem os fatos na sua devida conformação”:

“Não é difícil perceber os danos que a mera existência de uma ação penal impõe ao indivíduo. Daí, a necessidade de rigor e prudência por parte daqueles que têm o poder de iniciativa nas ações penais e daqueles que podem decidir sobre o seu curso.

Em suma, denúncia imprecisa, genérica e vaga, além de traduzir persecução criminal injusta, é incompatível com o princípio da dignidade humana e com o postulado do direito à defesa e ao contraditório”, havia escrito Gilmar.

O poder de iniciativa, no caso Moro, foi da PGR. Quem se arrogou o poder de decidir sobre seu curso é a Primeira Turma do STF. Sem rigor nem prudência, todos preferiram impor ao ex-juiz os “danos” de uma ação penal, legitimando uma denúncia imprecisa, genérica e vaga, desejada por um colega historicamente contrário a isso.

Dino continuou:

“Esse lapso temporal não pode ser, na minha ótica, obstado neste momento, daí porque considero que a eminente relatora analisou bem a questão neste momento, sem prejuízo, claro, da instrução processual fixar um outro momento temporal de consumação; lembrando que, de regra, o momento da consumação do crime é o momento da publicidade. Essa é a regra para os crimes contra a honra.”

Na verdade, não há regra, aprovada pelo Poder Legislativo, sobre casos em que a “publicidade” de um corte de vídeo se dá por terceiro e não se investiga mais do que uma matéria de imprensa sobre a circulação do corte.

“Então, mesmo que a perpetração, ou a pronúncia da frase, tivesse sido em outro momento, até aqui é incontroverso que a divulgação se deu em abril de 2023, portanto na vigência do mandato de senador.

Por essas razões iniciais, eu acompanho a eminente relatora”, concluiu Dino.

Até aqui, incontroverso é que ninguém do sistema de Justiça se deu ao trabalho de examinar o que aconteceu, à luz dos fatos, das leis e da jurisprudência.

6.3

Eis uma decisão unânime de cinco ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça de contra uma queixa considerada inepta.

“Para a caracterização do crime de calúnia é necessária a imputação a alguém de fato definido como crime, sabendo o autor da calúnia ser falsa a atribuição.

Nos termos da jurisprudência desta Corte e do Supremo Tribunal Federal, se não há na denúncia descrição de fato específico, marcado no tempo, que teria sido falsamente praticado pela pretensa vítima, o reconhecimento da inépcia é de rigor, porquanto o crime de calúnia não se contenta com afirmações genéricas e de cunho abstrato.”

É de rigor, de acordo com a jurisprudência do STF, portanto, reconhecer a inépcia, se não há “fato específico, marcado no tempo, que teria sido falsamente praticado”. Brincadeira junina sobre “fiança… pra comprar habeas corpus de Gilmar” remete a possível ato de Moro que, além de vinculado a um instituto legal, não especifica fato algum, nem o marca no tempo.

Como escreveu o advogado de Moro, Luis Felipe Cunha, em sua primeira manifestação à relatora Cármen Lúcia, em 22 de maio de 2023:

“A calúnia exige a imputação precisa, com todas as circunstâncias constitutivas da infração, ou seja: sujeito ativo, passivo, o tempo, o lugar, a qualidade do objeto e o evento ou acontecimento previsto em lei.

SERGIO MORO não atribuiu a responsabilidade de um acontecimento concreto e criminoso ao Ministro Gilmar Mendes. O conceito objetivo do tipo penal resta esvaziado, portanto.”

A manifestação, como já mostrei em outra matéria, elencava numerosas decisões neste sentido, tomadas por ex e atuais ministros do Supremo, como Joaquim Barbosa e Rosa Weber, Gilmar Mendes e Edson Fachin.

“É inepta a queixa que imputa ao querelado a prática do crime previsto no art. 138 do Código Penal sem narrar o fato com todas as suas circunstâncias”, escreveu Rosa Weber, por exemplo.

Repito: “narrar o fato com todas as suas circunstâncias”.

“O crime de calúnia exige, para sua configuração, imputação de fato falso e determinado. Mera alusão ao nomen iuris [‘nome do direito’, expressão utilizada para designar uma denominação técnica] do crime em ofensas pessoais não configura o crime de calúnia se não há imputação de fato circunscrito numa situação específica”, completou a então ministra do STF.

Mas retomo a decisão do STJ, que não foi citada pela defesa:

“No caso, está ausente da queixa a narrativa de que o querelado imputou ao querelante fato criminoso determinado, devidamente situado no tempo e espaço, com a indicação suficiente das circunstâncias específicas nas quais teria ocorrido.

Recurso em habeas corpus provido para trancar a Ação Penal n. XXXXX-35.2013.8.06.000, por inépcia da queixa, nos termos do art. 395, I, do Código de Processo Penal.”

Repito: “devidamente situado no tempo e espaço”.

Quando e onde Moro teria ido “comprar” de Gilmar sua própria liberdade, mediante fiança?

A única resposta possível a tal pergunta seria: na barraca de prisão da festa junina de 2022, no dia do evento, ou eventualmente no local da mesma brincadeira nos anos seguintes, caso Gilmar comparecesse e quisesse vender um “habeas corpus” para libertar Moro da prisão junina, o que, no entanto, não seria crime algum.

6.4

Flávio Dino, depois de votar a favor do recebimento da denúncia inepta contra Moro por alegada calúnia, votou, na mesma tarde, em outro julgamento, contra tornar réu o deputado federal José Nelto, vice-líder de Lula, padrinho do ministro do STF, por chamar o também deputado federal, mas de oposição ao governo Lula, Gustavo Gayer, de “nazista” e “fascista”.

“Eu considero que a palavra nazista, fascista, não possui o caráter de ofensa pessoal ao ponto de caracterizar calúnia, injúria, difamação. É uma corrente política estruturada, na sociedade, no planeta”, alegou Dino.

“Nazista, fascista, extrema-direita, extremista, é da ditadura, apoiou a ditadura militar, não apoiou, defende a democracia, defende o comunismo, é a favor do Muro de Berlim, essas coisas todas, que são ditas há décadas, fazem parte, infelizmente, de um certo debate político, entre aspas, normal. Mas dizer que alguém matou, agrediu outrem a meu ver não se encontra, a princípio, acobertado pela imunidade”, acrescentou Dino.

Vincular um opositor de Lula ao extermínio de seis milhões de judeus é menos grave para Dino que fazer piada envolvendo um colega do ministro do STF e aliado de seu padrinho em brincadeira de São João.

É preciso destacar, porém, a expressão usada por Dino: “essas coisas todas, que são ditas há décadas, fazem parte, infelizmente, de um certo debate político, entre aspas, normal”.

O que faz parte do “debate político, entre aspas, normal” no mundo democrático, como mostrei com numerosos exemplos, inclusive o da petista Gleisi Hoffmann, é tratar fiança como meio de “compra” de decisão judicial pela liberdade.

É curioso que o ministro só tenha pensado no referido argumento no julgamento conveniente.

O duplo padrão de Dino ilustra a politização do STF.

  1. O rebaixamento das instituições

A penetração no sistema de Justiça brasileiro da linguagem e dos métodos de manipulação usados pelas militâncias de rede social foi um processo acompanhado em meu trabalho jornalístico desde o exame em 2015 das postagens dos MAVs do PT (militantes da Mobilização em Ambientes Virtuais, criada pelo partido) até a decisão da Primeira Turma do Supremo em 2024, passando pela censura da revista Crusoé no âmbito do inquérito das fake news em 2019 e por outras já famigeradas decisões de Alexandre de Moraes contra plataformas de redes sociais, sobretudo no caso do Telegram em 2023, quando a afetação de repúdio (“ILEGAL e IMORAL”) substituiu inteiramente o exame da mensagem censurada.

Por todo o exposto, o caso de Moro simboliza o apogeu desse processo em que o sistema de Justiça se rebaixa a um tribunal de internet, com a cumplicidade das emissoras de TV amigas.

O mandato do senador foi mantido no Tribunal Superior Eleitoral, então presidido por Moraes, mas na coleira, por sua turma no STF, sabe-se lá por quantos anos mais até análise do mérito.

Os colegas de Gilmar garantiram que a representação de Gilmar tivesse um efeito prolongado no tempo, exatamente como se o sistema dissesse a seu mais notório desafeto:

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