O psicólogo social Leon Festinger criou um conceito chamado dissonância cognitiva. Ele ocorre quanto os fatos vão de encontro às crenças do indivíduo.
Diante disso há dois caminhos. O primeiro é realmente perceber que erramos ou que o mundo é mais complexo. É um caminho difícil quando a pessoa está muito comprometida com a crença ou quando está inserida num grupo unido por crenças inquestionáveis.
A insistente camaradagem de Lula com Maduro entra nesse universo. É uma ditadura, há inúmeros fatos que mostram o problema que serão as próximas eleições. No entanto, o presidente do Brasil insiste em dizer que é preciso dar “presunção de inocência” ao ditador venezuelano.
Lula foi eleito prometendo restaurar a democracia. Esse discurso não apela a todos que empenharam nisso seus votos, apela somente aos devotos.
É um comportamento que contrasta com aquele voltado ao outro lado do mundo, ao Oriente Médio. Existe um excesso de certezas sobre o que se passa em Gaza, mas um alegado desconhecimento sobre o ocorrido aqui do lado, na Venezuela.
A postura é inflexível contra Israel, a única democracia do Oriente Médio. De certa forma, parece ser também inflexível com a Venezuela de Maduro.
O ditador venezuelano inviabilizou as candidaturas de diversos opositores que poderiam concorrer contra ele nas eleições. O Tribunal Penal Internacional recentemente anunciou que vai prosseguir nas investigações sobre crimes contra a humanidade. Entre eles estão as reações que mataram manifestantes contra o governo em 2017 e também a atuação do tribunal eleitoral inviabilizando opositores.
Aliás, Nicolás Maduro contesta a legitimidade do TPI para julgar outra questão, a intenção de tomar da Guiana o território de Essequibo. Este assunto foi tema do Narrativas Antagonista de número 45.
Agora Maduro diz que não aceita que o TPI julgue o caso porque seria “colonialismo judicial”. É o mesmo tribunal que condenou Putin por genocídio. E também o mesmo em que o Brasil se associou a outros países, a maioria ditaduras, para acusar Israel de genocídio em Gaza.
Outro fato recente é a expulsão da Venezuela da equipe da ONU. Cometeram o pecado de condenar publicamente a prisão de adversários políticos.
Também foi tirada do ar a televisão estatal alemã Deutsche Welle, que fez uma reportagem sobre a corrupção no governo Maduro. Os dirigentes mantiveram o programa no ar no YouTube e demandam que a TV volte a operar no país.
Outro problema recente é com o Chile, governado pelo esquerdista Boric. O país deu asilo ao militar dissidente Ronald Ojeda Moreno. Ele foi sequestrado e assassinado. Um adolescente venezuelano, imigrante ilegal, já foi detido pelo crime. Outros dois comparsas são procurados. Os detalhes foram reportados por O Antagonista.
São fatos que apontam fartamente para os riscos de que as eleições venezuelanas, cujo calendário oficial acaba de ser divulgado, não sejam exatamente democráticas.
O presidente Lula tem prestígio junto a Nicolás Maduro e liderança na América Latina. É uma questão em que ele realmente pode interferir, diferente do que acontece com a questão de Israel ou da Ucrânia.
Se Lula condenasse publicamente Maduro, seria contraproducente. Há mecanismos diplomáticos e contatos de alto nível com muito mais chances de sucesso. Além disso, interromperia o contato e a influência.
Uma condenação pública poderia deixar muita gente contente, mas não seria efetiva na prática. Passar pano publicamente para Maduro, no entanto, é uma opção ainda pior do que essa.