Pluralidade social não substitui a pluralidade política
Estão confundindo tudo. É bom ter pluralidade de gênero, orientação sexual, raça, etnia ou cor, condição física ou psíquica etc. mas essa pluralidade social não significa pluralidade política. Uma frente democrática não pode...
Estão confundindo tudo. É bom ter pluralidade de gênero, orientação sexual, raça, etnia ou cor, condição física ou psíquica etc. mas essa pluralidade social não significa pluralidade política. Uma frente democrática não pode ser só uma frente de esquerda com mulheres de esquerda, pretos de esquerda, gays de esquerda, índios de esquerda, portadores de diferenças de esquerda.
Os que agora querem valorizar as minorias sociais (na onda do identitarismo), não adotam a mesma postura em relação às minorias políticas. Os identitaristas, em geral, admitem a diversidade e a pluralidade social, mas não a diversidade e a pluralidade política.
Em qualquer lugar defendem a presença de representantes de mulheres e da chamada comunidade LGBTQIA+, de pretos, de indígenas ou de povos originários e de portadores de deficiências, mas desde que estejam alinhados ao mesmo campo ideológico. Se estiverem no campo ideológico oposto (considerado inimigo pelos populistas), não! Neste caso, é melhor que não pontifiquem. Ora, não adianta incluir minorias sociais se continuamos excluindo minorias políticas democráticas.
Democracia não é a mesma coisa que cidadania. Democracia pressupõe pluralidade e diversidade política. Isso não pode ser substituído por pluralidade e diversidade social, que é importante, mas tem a ver mais propriamente com cidadania.
É desejável que o processo de democratização crie condições para a universalização da cidadania. Mas uma cidadania universalizada e inclusiva não pode ser precondição para o exercício da democracia. Se fosse assim nenhuma democracia teria nascido. A primeira democracia, dos antigos atenienses, nasceu numa sociedade com escravos. A democracia foi reinventada pelos modernos, nas suas variantes inglesa, americana e francesa, em sociedades com pouca pluralidade e diversidade social e onde a cidadania era restrita.
Hoje a democracia já está mais universalizada nesses países e no mundo em geral. Mas se os inventores e reinventores da democracia ficassem esperando a universalização da cidadania para experimentar a democracia, jamais teríamos ouvido a palavra democracia.
Em termos práticos, se incluímos uma mulher de esquerda, um preto de esquerda, um gay de esquerda, um indígena de esquerda etc., isso é melhor do que não incluir, mas não é pluralidade e diversidade política. Assim, entretanto, foi composto o ministério de Lula que, na falta de pluralidade e diversidade política (pois, tirando os fisiológicos alugados para fazer maioria no Congresso, só tem dois capturados fora do campo da esquerda – Alckmin e Simone) povoou seu plantel com “representantes” das minorias sociais (até a representante dos povos originários é do… PSOL).
Há uma reengenharia ideológica em curso nesses movimentos. O populismo de esquerda está promovendo uma alteração do significado (na intenção e na extensão do conceito) de democracia. A palavra está sendo usada para designar cidadania (para o povo) e soberania (do povo). E ‘povo’, aqui, não significa população, nem é um conceito sociológico e sim político-ideológico: é o contingente que (seguindo o líder populista) se opõe às elites (contra as quais luta o líder populista).
A palavra ‘povo’ usada e abusada pelos populistas, tem origens suspeitíssimas. Hannah Arendt (c. 1950) nos seus fragmentos póstumos sobre o O que é política? escreveu:
“No caso dos romanos a política começou como política externa; portanto, exatamente com aquilo que, segundo o pensamento grego, estava situado fora de toda a política. Também para os romanos o âmbito político só podia surgir e existir dentro da coisa legal; mas esse âmbito surgia e se multiplicava ali onde diferentes povos se encontravam entre si. Esse encontro é guerreiro, e a palavra latina populus significava originalmente “mobilização para o exército” (Altheim), mas essa guerra não é o fim, porém o começo da política, ou seja, de um espaço político novo, surgido do tratado de paz e de aliança”.
Em geral diz-se que a palavra ‘democracia’ significa ‘poder do povo’. Mas o ‘demos’ – que compõe a palavra ‘democracia’: o poder (‘cratos’) do ‘demos’ – se referia originalmente aos distritos implantados a partir da reforma de Clístenes (508 a.C.). Sim, foi uma reforma distrital, que substitiu o poder do ‘genos‘ (os aglomerados das grandes famílias da aristocracia fundiária) pelo poder do ‘demos‘ (as novas circunscrições que agregavam pessoas por base territorial, sem ordem de filiação). Na democracia ateniense não havia esse conceito (populista) de ‘povo’ para designar a parte da população que vivia em piores condições socioeconômicas.
Na sua cerimônia de diplomação (em 12/12/2022) Lula afirmou. “A democracia só tem sentido, e será defendida pelo povo, na medida em que promover, de fato, a igualdade de direitos e oportunidades para todos e todas, independentemente de classe social, cor, crença religiosa ou orientação sexual”.
E na sua entrevista ao jornal El País (em 20/11/2021) Lula respondeu. “Os democratas precisam aprender que a democracia é uma coisa séria. O povo não quer uma democracia para gritar que está desempregado; ele quer trabalho. Não quer democracia para gritar que está com fome; quer comer. O povo não gosta da democracia para dizer que não tem possibilidade de estudar; ele tem que estudar. E a democracia precisa garantir esses direitos. Na verdade, a democracia falhou em muitos lugares”.
Nesta resposta encontramos o núcleo da concepção de democracia de Lula. Em outras palavras – e em síntese – ele disse que a democracia não faz sentido se o povo passa fome. É a concepção da esquerda, segundo a qual a igualdade (socioeconômica) é precondição para a liberdade (política). Ademais, Lula acha que a democracia tem o dever de dar “casa, comida e roupa lavada” para o povo. É uma concepção claramente populista (porque caberá a alguem dar isso para o povo: o líder populista).
A igualdade (ou a redução das desigualdades) é desejável, mas – como já foi dito acima – se a democracia dependesse disso não teria sido inventada numa economia (em parte) escravista, em Atenas, na passagem do século 6 para o século 5 a.C. Se as pessoas não tiverem a liberdade de empreender esforços individuais e coletivos para melhorar suas condições de vida, quem deveria fazer isso? A resposta é óbvia: o líder populista, preparado (por quem, por Deus?) para conduzir o povo em direção a uma condição em que, aí então, a democracia faria sentido.
Essa é uma discussão resolvida por Amartya Sen nos anos 70. Quando perguntado se alguns povos estavam ou não preparados para a democracia, ele respondeu que a pergunta não tinha sentido na medida em que todos os povos se preparam “através da democracia”. A democracia é meio e fim. No que tange à igualdade (ou à redução das desigualdades) o que a democracia faz é permitir (mudando os padrões de convivência social) que as pessoas – caminhando com suas próprias pernas – possam dispender esforços para melhorar as suas condições de vida.
Pior do que isso, entretanto, é interpretar a democracia como soberania popular. Imaginando que democracia seja, fundamentalmente, soberania popular, o populismo de esquerda faz um raciocínio simples, primário e incorreto: se nós somos os legítimos (ou mais legítimos) representantes do povo, o “verdadeiro povo” (the true people – composto pelos que seguem o líder), então nós somos a verdadeira democracia (traduzida como uma sociedade menos desigualitária e mais justa). Ou melhor, uma sociedade menos desigualitária e mais justa só poderá se estabelecer quando nós hegemonizarmos todos os processos da vida social, a começar pelas instituições estatais, passando pelos corporações sindicais e movimento sociais, até chegar às diversas formas primárias de sociabilidade.
Mas a democracia não é o poder de um (monarquia), dos melhores (aristocracia), de uma minoria (oligarquia), da maioria ou de todos (majoritarismo e tirania da maioria) e sim o poder de qualquer um. Como notou Jacques Rancière (2005), no seu magistral opusculo O ódio à democracia, isso quer dizer: “a indiferença das capacidades para ocupar as posições de governante ou de governado”.
Nas diretrizes redigidas pela direção do PT para o programa Lula (divulgadas em junho de 2022), a palavra soberania aparece 13 vezes (mais do que a palavra democracia – que, quando aparece, não raro vem junta com a palavra soberania).
Na cabeça de cada populista encontra-se o gérmen dessa ideia de raiz autocrática: a ideia de soberania. Entretanto, para a democracia nenhuma pessoa, nenhuma parcela da população (nem mesmo a abstração chamada ‘o povo’ para se referir aos mais pobres ou à maioria), nenhum governo, nenhum partido, podem ser soberanos. Só a lei (democraticamente aprovada) pode ser soberana.
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