Orlando Tosetto na Crusoé: Fábula fabulosíssima, à maneira de Millôr Fernandes
A Hidra sorriu com todas as cabeças: era verdade, a água democrática corria dela, minava dela para o fofo deputado
Chegando junto à beira do riacho, o pequeno e felpudo deputado federal ajoelhou-se e pôs-se a beber a água que corria, risonha, franca e democrática, pelo leito republicano daquele córrego. Enquanto bebia, despreocupado, deu-se que, rio acima, surgiu e veio vindo, furibunda (ou furinádega, pois esta é uma revista de família), e lambendo os beiços, visto viver faminta, a Hidra de Onze Cabeças. Vinha devagar, arfando sob o peso de sua dignidade toda suarenta, abafada por uma veste negra feita de um pano muito bom, seda talvez.
— Com que então estás tu aí – disse a Hidra com onze vozes vociferantes (a Hidra é toda castiça; de vez em quando solta até um fumus de latim) – poluindo, com teus lábios pérfidos, quiçá golpistas, a linfa potável que beberemos?
A Hidra fala “nós” não porque usurpou o plural majestático (pelo menos, eu acho que não): é porque cada uma das suas onze cabeças acha que é uma Hidra à parte, uma Hidra monocrática, então ela fala de si assim, colegiadamente.
— Linfa potável? – perguntou, confuso, o felpudo deputado, olhando o regato como se estivesse cheio de larvas e casulos de borboletas.
— É “água” na língua da corte, menino – disse, impaciente, uma das cabeças, a mais linfática e areada de todas. – Não te esqueças de que somos funcionária do rei. Mas como é isso então de sujares nossa água democrática? Explica-te!
— Ah. Bem, dona Hidra, é verdade: eu estou aqui bebendo a água, mas você…
— “Você” não! – bradou a Hidra, farfalhando, todas as suas cabeças vermelhas de ira. – A senhora! Excelência! Não somos uma qualquer!
O veloso deputado, esquecido de que era também ele, por decreto, excelente, fez uma vênia desajeitada.
— Mil perdões: a senhora excelência. Pois então: perceba a senhora excelência que está rio acima. A água corre, democrática, da senhora excelência para mim: não tem como eu a sujar antes da senhora excelência beber.
A Hidra, no primeiro momento, sorriu com todas as cabeças: era verdade, a água democrática corria dela, minava dela para o fofo deputado. Mas depois pensou melhor e não gostou: tinham-lhe respondido, tinham-na contestado. E quem? Algum potentado? Alguém que lhe fosse igual, que com ela ombreasse? Não: um mero, um lanígero deputado. Fechou as caras e, franzindo todas as vastas testas, foi se aproximando do representando eleito do povo.
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