Liberdade de expressão: está na hora de tentar algo novo
Em sua sabatina no Senado na última terça-feira, o novo Procurador-Geral da República Paulo Gonet repetiu um daqueles chavões que estão se naturalizando no nosso debate público – o que significa que começam a passar batido, como se contestá-los fosse sem sentido...
Em sua sabatina no Senado na última terça-feira, o novo Procurador-Geral da República Paulo Gonet repetiu um daqueles chavões que estão se naturalizando no nosso debate público – o que significa que começam a passar batido, como se contestá-los fosse sem sentido.
Refiro-me à sua declaração de que “a liberdade de expressão não é plena, pode e deve ser modulada de acordo com as circunstâncias”.
Num sentido muito básico, a declaração é verdadeira até mesmo no país que mais protege a liberdade de expressão, os Estados Unidos. Vem de lá um dos exemplos de “modulação” citados por Gonet na sabatina, o célebre caso do sujeito que grita “Fogo!” em um espaço lotado, causando pânico e atropelo.
A Suprema Corte dos Estados Unidos usou essa situação hipotética em 1937 para criar um teste capaz de orientar decisões futuras: se uma fala pública cria circunstâncias de “perigo claro e iminente”, ela não está coberta pela liberdade de expressão.
Como todos os outros sistemas legais, o americano também protege os cidadãos contra injúrias, difamação e calúnias – especialmente essas últimas, que consistem em atribuir uma conduta criminosa a uma pessoa.
Em geral, no entanto, a balança no judiciário americano pende para a liberdade e não para o controle. Desde 1964, a Corte Suprema deixou claro que personagens notórios – e também funcionários públicos como juízes e promotores – só serão indenizados por ofensas veiculadas na imprensa se provarem que houve má fé na publicação.
O STF brasileiro, que recentemente tornou veículos de comunicação corresponsáveis por ofensas praticadas por entrevistados, jura de pés juntos que pretendia replicar a lógica adotada nos Estados Unidos. Mas é difícil de acreditar.
Primeiro, porque a tese do STF foi redigida em linguagem ambígua, o que indica duas possibilidades preocupantes: ou incapacidade de produzir um texto claro, ou o desejo de fazer exatamente como fizeram.
Em segundo lugar, porque toda a ênfase dos discursos dos ministros, seja nos autos, seja nas muitas vezes em que se manifestam em público, tem sido no sentido de apontar para os supostos males, prejuízos e perigos causados pela liberdade de expressão.
Não se trata de um discurso sobre a liberdade, mas sobre a importância, a necessidade mesmo de restringi-la e submetê-la a constante vigilância. O mesmo vale para a fala de Gonet.
Por razões que não têm a ver com meu trabalho no Antagonista, acabei tendo de dar uma espiada no processo de criação das leis de imprensa das décadas de 1920 e 1930.
Fiz uma constatação chocante: a linguagem usada nas discussões daquela época, em que a imprensa estava sob assédio constante, quando não sob censura pura e simples, é parecidíssima com a que autoridades como Gonet usam hoje em dia.
A primeira lei de imprensa do período republicano foi formulada em 1922 e promulgada em 1923. Seu autor foi o senador Adolpho Gordo, que discursou desta forma ao apresentar o projeto:
“Não diz novidade alguma afirmando que a liberdade da imprensa é a garantia e mesmo a condição – não só das liberdades individuais, como das liberdades sociais. Mas, se o legislador deve garantir plenamente a liberdade da imprensa, deve também, tendo em vista elevados e ponderosos interesses de ordem publica, procurar evitar, com medidas salutares e benéficas, que essa liberdade se converta em abuso.”
Veja que 100 anos atrás a fórmula “a liberdade de imprensa é fundamental, mas…” já estava em pleno uso.
Depois que a lei entrou em vigor, em 1923, ela foi usada pelo governo para censurar jornais por atentado aos bons costumes e para levar jornalistas e diretores de veículos para a cadeia.
Uma das principais promessas da Aliança Liberal, o partido de Getúlio Vargas nas eleições de 1930, era restituir a plena liberdade de expressão ao país.
O grupo perdeu as eleições e tomou o poder com a Revolução de 30. Nos anos de Governo Provisório que se seguiram, a censura foi mantida. Por causa disso, a liberdade de expressão também era um tema quentíssimo quando uma Assembleia Constituinte passou a funcionar, no final de 1933. Obviamente, governistas (amplamente majoritários) e oposicionistas estavam de acordo que ela deveria ser restaurada com todas as honras pela nova Carta.
Mas, quando a Constituição que “encerrava o período de governo ditatorial” (os próprios partidários do regime não hesitavam em usar essa palavra) ficou pronta, este foi seu artigo sobre a questão:
“Em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento, sem dependência de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um pelos abusos que cometer, nos casos e pela forma que a lei determinar. Não é permitido anonimato. É segurado o direito de resposta. A publicação de livros e periódicos independe de licença do Poder Público. Não será, porém, tolerada propaganda, de guerra ou de processos violentos, para subverter a ordem política ou social.”
Pela primeira vez no Brasil, uma Constituição estabeleceu a censura prévia. O governo que havia chegado ao poder por uma revolução proibia discursos revolucionários.
Pouco depois de a Constituição de 1934 entrar em vigor, Vargas editou um decreto regulamentando a imprensa. Seu capítulo sobre delitos e penas tinha 18 artigos, entre os quais a primeira criminalização das fake news:
“Art. 11. Publicar notícias falsas, ou noticiar fatos verdadeiros, umas e outros, porém, tendenciosamente, por forma a provocar alarme social, ou perturbação da ordem pública; – penas de multa de 500$ a 2:000$ ou prisão por um a seis meses.”
Desculpe se me alonguei com essas citações todas. É que fiquei espantado, como disse, ao perceber como a tradição brasileira de medo e desconfiança em relação à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa vem de longe.
Juízes e políticos que hoje em dia, em nome do “binômio liberdade com responsabilidade”, pretendem criar mecanismos estatais de combate às fake news, proteção à honra de pessoas públicas e coisas tais, macaqueiam atitudes de um século atrás (para ficar no período da República). Eles põem a ordem muito acima da liberdade.
Pergunto-me se não seria o caso de tentar algo novo. Em vez de repetir a fórmula “a liberdade é importante, mas…”, invertê-la para ver o que resulta: “Somos um país de hábitos autoritários que vêm de muito longe, mas está na hora de encontrar maneiras de fomentar a liberdade de expressão.”
Os comentários não representam a opinião do site; a responsabilidade pelo conteúdo postado é do autor da mensagem.
Comentários (0)