Conviver com o uso da expressão “legítima defesa da honra” em pleno 2024 é inadmissível. Triste, nojento e completamente inaceitável. Aqui não falo daquela tese chatíssima do pessoal do todEs que quer proibir criado-mudo, mulata e nas coxas por suposta origem racista. Falo de outra coisa, do signficado de uma expressão técnica jurídica.
Legítima defesa da honra é o conceito jurídico de que o homem pode matar a mulher por ciúmes ou desconfiança de traição. É uma expressão fechada e técnica que significa isso e só isso há séculos. Ela chegou a valer no Brasil quando seguíamos as leis portuguesas. Foi banida com a constituição de 1830, há quase 200 anos. A partir daquele momento, o Brasil não teve mais legítima defesa da honra. Adultério passou a ser punido com prisão temporária tanto para homens quanto para mulheres. Esse termo nunca esteve formalmente em nossa legislação, mas tem uma maldição invisível que parece resistir no Brasil.
A expressão foi ressuscitada por um dos maiores criminalistas do país, Evandro Lins e Silva, no famoso caso de Doca Street, que assassinou Ângela Diniz nos anos 70. Um dos mais brilhantes criminalistas da história do Brasil resolveu ressuscitar o termo técnico “legítima defesa da honra”. Alegava que Ângela Diniz, a “pantera de Minas”, que largou marido e três filhos para morar com o amante, também o traía.
Uma defesa emocionada dizia que, diante da honra arruinada, Doca Street perdeu a cabeça e lavou a honra com sangue. Era como se fosse uma legítima defesa, mas ele se excedeu sem intenção. O resultado? Doca recebeu apenas 2 anos de cadeia, parte cumprida. Saiu praticamente livre e, pasme, aplaudidíssimo. Com isso, abriu-se um precedente perigoso e outros assassinatos semelhantes ocorreram, com defesas semelhantes.
Essa é a perversidade da “legítima defesa da honra”: não é apenas uma justificativa para um ato de violência, mas uma exigência social de que todo homem traído deve lavar sua honra com sangue, ou então ele não é homem. O mesmo discurso que vemos ecoar no caso da cadeirada de Datena em Pablo Marçal: “Eu sou homem, por isso dei a cadeirada.” Parece absurdo, mas é essa ideia de ser homem que ainda permeia nosso discurso público, ser um descontrolado fraco que bota nos outros a culpa do que faz.
Agora, você pode me perguntar: Datena sabia do histórico desse termo? Talvez não. Talvez ele tenha usado “legítima defesa da honra” sem compreender suas profundas implicações. As pessoas não têm obrigação de saber disso. Foi um esforço de quase 50 anos para que ele fosse finalmente sepultado no
Poucas sabem o significado do termo legítima defesa da honra, que só significa uma coisa. Advogados sabem. Estudantes de direito sabem. Jornalistas policiais sabem. Talvez o Datena não saiba. Não sei se ele sabe ou não. Ele cita a coluna do jurista Walter Maierovitch, amigo querido, como fonte da argumentação. Sugiro que leiam. Em nenhum momento ele usa o termo maldito “legítima defesa da honra”.
O meu problema não é apenas com a cadeirada. Por mim, teriam saído todos dali e ido à delegacia. Vai quem bateu, quem apanhou e quem testemunhou. E as autoridades decidam o que fazer. Não somos um país civilizado. É o país do “sabe com quem você tá falando?”. Gostaria que fosse o país do “quem você pensa que é?”.
O que realmente me choca é o ressurgimento dessa maldita expressão, que deveria ter sido enterrada para sempre. A “legítima defesa da honra” já foi considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, mas aqui estamos, ouvindo-a novamente em um contexto tão banal quanto um debate político.
E onde estão as feministas? Cadê o “mexeu com uma, mexeu com todas” quando a expressão mais perigosa para as mulheres no Brasil ressurge como se fosse normal? Cadê aqueles que deveriam estar na linha de frente, combatendo conceitos que legitimam a violência contra as mulheres? Se eles não estão aqui, eu estou.
Quando permitimos que a única defesa de alguém seja partir para a agressão física, estamos mandando uma mensagem terrível: se você não reage com violência, não tem honra. É esse o mundo que queremos?
E tenho mais um ponto. Esse conceito de que “bater é uma reação à provocação” é coisa de gente fraca. Ninguém bate porque foi provocado. As pessoas batem porque perderam o controle ou porque quiseram bater. E nenhum adulto pode culpar os outros por suas próprias decisões.
Datena decidiu errado. E ele já tomou decisões semelhantes antes.Invadiu o estúdio para dar um soco em Milton Neves, que apenas o elogiava. Deu uma cadeirada em Gilberto Barros.
Quem bate bate porque bate, não porque foi provocado. É maligna a ideia de que se justifica reação física a provocação verbal. Quando se dá um salto passando do justificável ao “legítima defesa da honra” estamos diante de algo demoníaco. É um recado público: quem não reage assim nem tem honra nem sabe se defender.
Quando essa mentalidade podre toma conta da sociedade, quem mais sofre são as mulheres e crianças. É esse o mundo que você quer? Silêncio neste momento não é aceitável.