Em setembro de 2020, Jair Bolsonaro alcançou aquele que talvez seja o ponto mais baixo de sua presidência tão pródiga em baixarias. Ele recebeu uma garota de 10 anos, uma youtuber, para conversar em sua live semanal. Bolsonaro estava à vontade. Tão à vontade que fez um gracejo de duplo sentido com a menina. Quando ela explicou que suas primeiras entrevistas em vídeo haviam sido feitas aos seis anos, ele deu uma conotação sexual à expressão “começar cedo”. Bolsonaro gargalhou, assim como o sanfoneiro do Planalto, que o acompanha no vídeo.
Bolsonaro jamais entendeu, e jamais vai entender, que preservar a dignidade da Presidência é um dos seus deveres — não por causa de algum formalismo antiquado, mas porque a instituição não deveria se confundir com as idiossincrasias de quem a ocupa.
Mas essa história antiga me veio à cabeça por causa do fuzuê iniciado neste fim de semana pelo vereador niteroiense Douglas Gomes (PTC-RJ), um bolsonarista fanático. Seu pretexto é ainda mais antigo que o meu: um filme de 2017, Como Se Tornar o Pior Aluno da Escola, que faz parte do catálogo da Netflix. Gomes foi ao Twitter e anunciou que mobilizaria o MP contra o filme, por cenas “explícitas de pedofilia”. Logo em seguida embarcaram na cruzada o ministro da Justiça Anderson Torres, a ministra dos direitos humanos Damares Alves e o secretário de Cultura Mario Frias.
Eu não assisti ao filme, que tem roteiro do humorista Danilo Gentili, mas vi a cena em que o personagem de Fábio Porchat tenta convencer dois adolescentes a masturbá-lo. Não creio que vale a pena invocar em seu favor argumentos sobre a licença de que a comédia sempre gozou, desde a Grécia Antiga, para ofender e escandalizar.
Mas acho ainda pior do que o filme esse exercício explícito de hipocrisia praticado por dois ministros e um secretário de Estado. Por que Damares e Frias, que já estavam no governo, não pediram demissão quando Bolsonaro produziu sua chanchada audiovisual com a menina de 10 anos? Por que Anderson Torres, de senso moral tão delicado, aceitou trabalhar em um governo cujo titular é capaz de atitudes que, pelo menos à primeira vista, se enquadram num artigo do Estatuto da Criança e do Adolescente? (Eis o texto do artigo 232: “Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento. Pena – detenção de seis meses a dois anos”.)
A gritaria dos santarrões bolsonaristas nas redes sociais é sórdida. A ideia de que o estado brasileiro pode mobilizar todo o seu peso contra um filme, enquanto o nosso antipresidente tem licença para fazer piadas de cunho sexual com uma criança, diante de uma audiência que sabemos ser formada principalmente por machões, é francamente assustadora.
O último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, relativo a 2020, mostrou que o Brasil teve redução nos casos de estupro de vulneráveis durante a pandemia. Ainda assim, os números são altíssimos: mais de 37,6 mil ocorrências naqueles 12 meses. Esse é o escândalo verdadeiro, e não ficcional, para o qual o governo e todas as pessoas que o defendem em nome das “nossas crianças” deveriam estar voltados.
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