Governo Lula apoia iniciativa que “reforça antissemitismo”, diz Celso Lafer
Ex-ministro das Relações Exteriores, o jurista Celso Lafer (foto) criticou a postura do governo Lula em apoiar uma ação da África do Sul...
Ex-ministro das Relações Exteriores, o jurista Celso Lafer (foto) afirmou que o governo Lula reforça o antissemitismo ao apoiar uma ação na Justiça internacional acusando Israel de genocídio.
“É um deslize conceitual de má-fé valer-se da imputação de genocídio para discutir as controvérsias jurídicas relacionadas à aplicação do direito humanitário e aos problemas da situação humanitária prevalecente em Gaza”, diz Lafer em carta endereçada a Mauro Vieira, titular do Itamaraty, e divulgada nesta sexta-feira, 12 de janeiro.
“O apoio à África do Sul é uma decisão da política externa que… ecoa as incoerências e tensões do clima político do momento”, acrescenta.
Ação da África do Sul
A África do Sul acusa Tel Aviv de cometer genocídio na Palestina. O apoio de Lula veio nesta quarta-feira, 10 de janeiro, após reunião com o embaixador da Palestina no Brasil.
A ação de Johannesburgo contra Israel foi protocolada na Corte Internacional de Justiça, em Haia, nos Países Baixos, e começou a ser julgada nesta quinta-feira, 11 de janeiro.
Leia a carta de Lafer na íntegra
Caro Mauro
Tomo a liberdade, pelas razões abaixo expostas, de tecer considerações sobre a iniciativa da África do Sul de submeter à CIJ uma imputação de genocídio a Israel – e do apoio brasileiro a tal iniciativa.
A Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime do Genocídio de 1948, promulgada no Brasil, configura a intenção de destruir, em todo ou em parte, um grupo nacional como um ingrediente constitutivo do tipo penal. Teve como fonte material uma reação da comunidade internacional aos horrores do Holocausto, deliberadamente perpetrado pelo racismo dos governantes nazistas aos judeus na Europa, antes e durante a 2ª Guerra Mundial, como sabemos.
Um tratado internacional, como estipula a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, ratificada pelo Brasil, deve ser executado de boa-fé pelas suas partes contratantes. Por isso, deve ser igualmente interpretado de boa-fé, em conformidade com seus termos e à luz do seu objetivo e finalidade, o que inclui a importância constitutiva da intenção, a mens rea.
Não se configura a mens rea do tipo penal de genocídio na condução das atividades bélicas de Israel na faixa de Gaza. Estas atividades configuram uma reação à agressão ao território de Israel, conduzida de forma indiscriminada pelo Hamas, que domina politicamente a faixa de Gaza.
É um deslize conceitual de má-fé valer-se da imputação de genocídio para discutir as controvérsias jurídicas relacionadas à aplicação do direito humanitário e aos problemas da situação humanitária prevalecente em Gaza que são graves problemas, de generalizada – preocupação.
Em síntese, na minha avaliação, a iniciativa da África do Sul não se propõe discutir o jus in bello e seus princípios. É uma instrumentalização do Direito Internacional. Tem como propósito, mediante a invocação do genocídio, contribuir para a deslegitimação do Estado de Israel no plano internacional. Reforça o antissemitismo. Está em discutível sintonia com os que almejam minar o direito à existência de Israel, que é uma explícita intenção da estratégia e da conduta do Hamas, de seus apoiadores e simpatizantes.
Uma das minhas preocupações como Chanceler, que você acompanhou, foi o de zelar pela consistência da política jurídica exterior do Brasil. É um ingrediente configurador do nosso lugar no mundo e, como tal, um componente do processo decisório da política externa. Vincula-se à credibilidade de nosso “soft power”. Pressupõe coerência.
O endosso à iniciativa da África do Sul enunciado na nota à imprensa do Itamaraty de 10/01 não atende aos requisitos de consistência e coerência da política jurídica externa do Brasil. Não é meio hábil para a discussão dos desafios do jus in bello, com os quais, validamente, se preocupa o nosso país.
O apoio à África do Sul é uma decisão da política externa que respalda a instrumentalização do Direito Internacional. Não obedece ao rigor das regras do Direito. Ecoa as incoerências e tensões do clima político do momento. Não acrescentará credibilidade erga omnes à posição do Brasil nas múltiplas instâncias da vida internacional.
É o que submeto à sua apreciação, também na condição de um devotado professor de Direito Internacional.
Atenciosamente, com um abraço
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