Crusoé: a tradição presidencial de perseguir ONGs no México
Governo mexicano recorre a diversos meios, incluindo espionagem, para conter críticas ao fracasso da guerra ao narcotráfico
Os funcionários da Fundação para a Justiça, organização de direitos humanos mexicana, estavam acostumados à rotina na Procuradoria Especial para Crime Organizado, no centro da Cidade do México.
Havia meses, eles iam ao local para coletar documentos das investigações do órgão sobre o massacre de San Fernando de 2011, na fronteira dos Estados Unidos.
Cerca de 200 pessoas, em sua maioria migrantes, foram executados e jogados em covas comuns na ocasião. O caso nunca foi resolvido e ninguém condenado; o crime é atribuído ao hoje extinto cartel Los Zetas.
Na visita de maio de 2020, os funcionários da Fundação para a Justiça se surpreenderam. Um procurador os seguiu até o estacionamento e disse: “Vejam com cuidado estes documentos. Vocês vão encontrar informação delicada. Se quiser, podem falar comigo depois”.
Os arquivos entregues desta vez mostravam que a Procuradoria havia aberto uma investigação contra a então diretora da Fundação para a Justiça, Ana Lorena Delgadillo.
Ana Lorena teve seus dados telefônicos, incluindo geolocalização, grampeados ao longo do ano de 2016, durante o governo de Enrique Peña Nieto (à direita na foto). Outra ativista de direitos humanos e uma jornalista também foram monitoradas.
“Uma das acusações era de que eu estaria ilegalmente representando um dos familiares dos desaparecidos no massacre. Nós temos documentos com firmas provando o contrário”, diz Ana Lorena a Crusoé.
Ela descreve a operação da qual foi alvo como “um ato de criminalização”. “E violaram a lei, porque não havia nenhuma base para nos investigar por crime organizado e sequestro”, acrescenta.
O trio foi monitorado com base em uma lei sancionada em 2010, no início da chamada “guerra ao narcotráfico”, quando se legitimou o uso das Forças Armadas para combater o crime organizado.
Essa política de Segurança Pública, em vigor até hoje, impulsionou a violência no México, incluindo violações cometidas pelo Estado. As organizações de direitos humanos que a denunciam passaram a ser perseguidas.
Com a aproximação do fim do mandato de Andrés Manuel López Obrador (à esquerda na foto), o AMLO, terceiro presidente da guerra ao narco, as expectativas para as organizações de direitos humanos não são as mais prósperas.
Uma reforma constitucional no governo López Obrador determinava 2024 como o prazo limite de uso das Forças Armadas na Segurança Pública, mas uma emenda o prorrogou para 2028.
Subsecretário de Direitos Humanos do governo AMLO até 2023, Alejandro Encinas ressalva que, antes da gestão atual, não havia nenhuma delimitação.
“Há um abismo enorme em relação aos outros governos. O marco legal estabeleceu controle sobre a atuação dos militares tanto pelo Congresso quanto por órgãos de fiscalização do governo federal”, afirma Encinas a Crusoé.
“Assim, foi possível avançar com investigações sobre delitos e execuções extra-judiciais”, acrescenta, citando o caso Ayotzinapa, relacionado à desaparição de 43 estudantes de uma universidade de uma comunidade rural em 2014.
Encinas trabalhou na comissão de apuração desse caso. Ele assinou e apresentou dois relatórios entre 2022 e 2023, responsabilizando as Forças Armadas, além de autoridades locais e o crime organizado, pelo desaparecimento. Dezesseis militares foram alvos de mandados de prisão.
Os familiares dos 43 estudantes e seus representantes legais afirmam que o governo ainda esconde participação militar no episódio. Segundo eles, 800 documentos sobre o caso continuam confidenciais.
A reforma constitucional de López Obrador também não impediu que o Exército continuasse a usar o software de espionagem israelense Pegasus contra críticos da guerra ao narco.
Segundo investigação do New York Times, o México foi o primeiro Estado a comprar o Pegasus, com o negócio firmado ainda em 2011, durante o governo de Felipe Calderón, que inaugurou a guerra ao narco.
A ferramenta tem sido usada por Estados autoritários para perseguir opositores. A família do jornalista Jamal Khashoggi, desafeto do regime da Arábia Saudita, foi espionada meses antes de seu assassinato na embaixada saudita em Istambul em 2018.
O software consegue acessar todos os dados do celular, incluindo geolocalização, de maneira unilateral. O alvo não tem como evitar o hackeamento.
Dentre os alvos da espionagem do governo mexicano, estiveram os dois diretores da organização de direitos humanos Centro Prodh, que representa familiares das vítimas do caso Ayotzinapa.
Santiago Aguirre e María Luisa Aguilar foram hackeados ao menos cinco vezes entre junho e setembro de 2022, já na gestão López Obrador.
“Eu não sei por que me hackearam. Mas, eu acho que isso diz mais sobre as instituições do Estado do que sobre o nosso trabalho”, diz María Luisa Aguilar a Crusoé.
No México, o Pegasus é operado exclusivamente pelo Exército.
Apenas na gestão Peña Nieto, 15 mil mexicanos foram espionados, dentre eles ativistas, jornalistas e familiares de vítimas de desaparições forçadas, de acordo com reportagem de um consórcio de imprensa francês.
Ainda não há levantamento sobre o saldo da espionagem realizada no mandato de López Obrador.
Durante a gestão AMLO, o Exército usou o Pegasus para espionar até mesmo Alejandro Encinas enquanto ele era subsecretário de Direitos Humanos.
Encinas foi hackeado “múltiplas vezes” até 2023, segundo o New York Times.
“Acho que eu fui espionado por meu trabalho de investigação no caso de Ayotzinapa, dentre outros, e no seguimento das recomendações internacionais”, diz o ex-subsecretário.
“Eu não assumi a subsecretaria de Direitos Humanos para ser um poste”, acrescenta.
Encinas deixou o cargo em outubro, um mês depois de apresentar o segundo relatório sobre o caso Ayotzinapa. Hoje, ele trabalha na campanha da candidata do partido de López Obrador para chefe de governo da Cidade do México.
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