O Réveillon como teste de civilização nos condomínios
As festas de final de ano não suspendem o Código Civil, o regulamento interno e nem o bom senso
Poucas coisas revelam tanto sobre um condomínio quanto o comportamento coletivo entre o Natal e o Ano-Novo. É o período em que regras aparentemente consolidadas entram em recesso informal e a convivência passa a ser tratada como um detalhe opcional.
De repente, o silêncio deixa de existir porque é “fim de ano”. A vaga de garagem vira extensão da sala. A área comum se transforma em salão de festas improvisado. O corredor assume função acústica de boate. Tudo com a justificativa universal: é só uma vez.
Não é.
O final de ano não suspende o Código Civil, o regulamento interno e nem o bom senso. Ele apenas expõe, de forma mais ruidosa, quem nunca levou nenhum dos três muito a sério.
Ficção delicada
O condomínio moderno vive de uma ficção delicada: a ideia de que indivíduos com rotinas, valores e tolerâncias distintas conseguem compartilhar o mesmo espaço sem que isso se torne um conflito permanente.
Essa ficção só se sustenta porque há regras claras, previsíveis e, sobretudo, aplicáveis. Quando o calendário vira desculpa, a convivência entra em colapso.
O erro clássico é tratar o período como exceção administrativa. O síndico some, o regulamento relaxa e a portaria vira mediadora de conflitos domésticos que não deveriam existir.
O resultado é previsível: reclamações, ameaças, chamadas para a polícia e, no dia seguinte, um condomínio mais irritado do que antes da comemoração.
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Celebração x desordem
Há uma diferença fundamental entre permitir celebrações e institucionalizar a desordem. Festas em unidades privativas são legítimas. O abuso é que não é.
O direito de comemorar não inclui o direito de impor trilha sonora, fumaça, gritaria ou circulação excessiva aos demais moradores.
A ideia de que “ninguém vai reclamar” costuma durar até o primeiro vizinho que precisa acordar cedo, o idoso que depende de silêncio ou a criança que não entende por que o apartamento virou extensão da rua. A partir daí, o Réveillon deixa de ser celebração e vira conflito.
O comportamento inteligente do condomínio no final do ano não exige criatividade, apenas coerência. Regras já existentes continuam valendo. Horários de silêncio não são decorativos.
Uso de áreas comuns não se transforma automaticamente em direito irrestrito. Vagas de visitantes não são patrimônio familiar. Segurança não entra em recesso.
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Injustiça
Quando o condomínio tenta ser excessivamente permissivo, acaba sendo injusto. Protege quem faz barulho e abandona quem só quer viver em paz.
A convivência não é um prêmio para os mais barulhentos, mas um pacto mínimo de respeito mútuo.
O síndico, nesse contexto, não é animador de festa nem fiscal de alegria alheia. É gestor de previsibilidade.
Seu papel é comunicar com antecedência, reforçar regras de forma objetiva e deixar claro que exceções não serão improvisadas sob pressão emocional ou euforia alcoólica.
Sem “deixar rolar”
Condomínios que avisam com antecedência, reforçam horários, orientam a portaria e deixam claro os limites tendem a passar pelas festas sem traumas.
Os que preferem “deixar rolar” invariavelmente terminam o ano com boletins de ocorrência e assembleias carregadas de ressentimento.
O final de ano, afinal, não testa a capacidade de celebrar. Testa a capacidade de conviver.
Celebrar é legítimo. Impor é incivilizado.
E talvez essa seja a lição mais difícil para alguns moradores aceitarem: viver em condomínio exige, inclusive nas festas, lembrar que o espaço é compartilhado.
Quem não suporta isso talvez devesse repensar o endereço — ou, no mínimo, o volume.
Por Rafael Bernardes, especialista em gestão condominial e fundador do Sindicolab
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