A guerra das tomadas e a resistência silenciosa à modernização urbana
A recarga interna não é um luxo progressista; é infraestrutura, o equivalente contemporâneo da vaga de garagem nos anos 1970
Nada revela tanto o atraso urbano brasileiro quanto a súbita comoção diante de uma tomada na garagem.
Durante anos, ninguém se mostrou especialmente incomodado com botijões de gás em subsolos, geradores a diesel funcionando em ambientes fechados, quadros elétricos envelhecidos ou bombas hidráulicas operando no limite.
Tudo isso sempre foi tratado como parte do folclore predial nacional. Mas bastou surgir o carro elétrico para que o condomínio médio descobrisse o conceito abstrato de risco.
Guerra das tomadas
Criou-se, então, a guerra das tomadas. Um conflito menos técnico do que psicológico. Menos sobre incêndio e mais sobre controle.
O roteiro é conhecido. O morador pede autorização. O síndico responde com um “não pode” genérico.
Alguém menciona o Corpo de Bombeiros, ainda que sem citar norma, instrução técnica ou laudo algum. A assembleia aplaude. A modernidade é barrada.
Todos dormem tranquilos, convencidos de que evitaram uma tragédia.
Exceto que não evitaram nada.
Desde 2025, a infraestrutura de recarga para veículos elétricos é uma das mais reguladas do país. Existem normas específicas da ABNT, exigências claras dos Corpos de Bombeiros, critérios objetivos de proteção, desligamento, sinalização e responsabilidade técnica.
O que não existe mais é espaço para veto baseado em sensação térmica, pânico difuso ou nostalgia do motor a combustão.
O problema nunca foi o carregador. O problema sempre foi a gambiarra.
Hélio Ferraz, especialista em infraestrutura de recarga e fundador da Energy Spot, resume a questão com a frieza que o tema exige. Um carregador instalado com projeto, equipamentos adequados e proteções corretas não é uma tomada adaptada. O risco é conhecido, mensurável e controlável. O perigo real surge quando se empurra a demanda para a informalidade, estimulada justamente pela proibição genérica.
Mas o incêndio virou argumento absoluto. Como se fosse novidade que tecnologias energéticas apresentam riscos específicos. Foi assim com o gás, com a eletricidade, com os elevadores, com os geradores. A resposta civilizada nunca foi proibir. Sempre foi normatizar.
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E a legislação?
A legislação paulista, felizmente, percebeu isso antes de muitos síndicos. O Projeto de Lei 425 de 2025 encerrou o ciclo do veto arbitrário.
O condômino pode instalar carregador em sua vaga privativa, desde que pague por isso e cumpra rigorosamente as normas técnicas e de segurança.
Para negar, agora é preciso laudo técnico. Opinião deixou de ser argumento.
Trata-se de uma correção de rota. Não ideológica, mas urbana.
Recarga residencial
Não existe mobilidade elétrica sem recarga residencial. Apostar apenas em carregadores públicos é desconhecer a vida real, os horários, os deslocamentos e a lógica básica de conveniência.
A recarga interna não é um luxo progressista. É infraestrutura. O equivalente contemporâneo da vaga de garagem nos anos 1970.
Ferraz é direto nesse ponto. Carregadores públicos cumprem papel complementar. Não substituem a previsibilidade da recarga em casa. Tratar essa infraestrutura como privilégio é ignorar como as cidades funcionam.
O curioso é que o discurso do risco costuma produzir exatamente o risco que diz combater.
Condomínios que proíbem estimulam soluções improvisadas. Condomínios que regulam exigem projeto, ART, equipamentos certificados e fiscalização.
A gestão reduz o perigo. A negação o multiplica.
E o seguro do condomínio?
Nem mesmo o argumento do seguro resiste a uma análise minimamente séria.
Seguradoras avaliam conformidade, não inovação. Instalações regulares não elevam prêmios. Irregularidades, sim.
E imóveis preparados para a mobilidade elétrica tendem a se valorizar, ainda que isso incomode quem prefere imóveis congelados no tempo.
Como o gestor deve agir?
O papel do síndico não é o de censor tecnológico, nem de guardião da memória do carburador. É o de gestor de risco. E gerir risco não é dizer não por reflexo. É exigir técnica, responsabilidade e conformidade.
A resistência aos carregadores elétricos não é novidade histórica. Toda inovação urbana relevante passou por esse mesmo teatro moral. Sempre houve quem dissesse que era perigoso demais. Sempre houve quem confundisse prudência com paralisia.
A diferença agora é que o futuro chegou antes da autorização da assembleia.
A técnica avançou. A lei acompanhou. O mercado se adaptou.
Quem insiste em combater tomadas talvez não esteja protegendo o condomínio.
Talvez esteja apenas desligando a própria relevância.
Por Rafael Bernardes, especialista em gestão condominial e fundador do Sindicolab
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