“O teto de gastos tem que ter data para acabar”
Fundador e gestor do fundo Skopos, investidor e conselheiro de grandes empresários, Pedro Cerize (foto), de 51 anos, é um dos principais nomes do mercado financeiro nacional. Mas ele está longe de ser um "faria limer". Esportista, campeão de triatlo, Pedro Cerize usa roupas de corrida no seu dia-a-dia e não gosta de ostentar riqueza. "No triatlo, ao contrário do que acontece na Faria Lima, ninguém é julgado pelo dinheiro que tem", costuma dizer...
Fundador e gestor do fundo Skopos, investidor e conselheiro de grandes empresários, Pedro Cerize (foto), de 51 anos, é um dos principais nomes do mercado financeiro nacional. Mas ele está longe de ser um “faria limer”. Esportista, campeão de triatlo, Pedro Cerize usa roupas de corrida no seu dia-a-dia e não gosta de ostentar riqueza. “No triatlo, ao contrário do que acontece na Faria Lima, ninguém é julgado pelo dinheiro que tem”, costuma dizer. Ele também não bajula poderosos e não tem medo de entrar em discussões públicas, para defender o seu ponto de vista ou apontar o que acha injusto ou ilegal. É um crítico dos investidores que são movidos pelo espírito de manada e gosta de raciocinar na contramão. Foi assim que construiu a sua fama (e fortuna). Nos últimos meses, ele estudou a fundo o teto de gastos, assunto que será central na campanha presidencial. A sua conclusão, mais uma vez, vai na contramão do que se pensa a respeito. Cerize acha o teto de gastos tão formidável que “condena o Brasil a dar certo” e, por isso mesmo, pode ser extinto daqui a 20 anos, deixando como legado um pacto nacional que beneficiaria o Tesouro, o governo, os cidadãos e, veja só, até os políticos. Nesta entrevista a O Antagonista, ele explica como chegou a essa proposta.
O teto de gastos vem sendo mantido a duras penas no governo de Jair Bolsonaro e Lula já disse que, se eleito, pretende aboli-lo. Como o mercado financeiro vê essa possibilidade?
Numa live no final do ano passado, Luis Stuhlberger afirmou que “o projeto do teto dos gastos foi concebido para durar apenas 5 anos. Depois disso, o Brasil já teria feito o ajuste necessário e poderia voltar a adotar modelos fiscais tradicionais”. Essa frase foi dita num tom tão casual que poucos perceberam o quanto o mercado nunca acreditou que o teto pudesse ser mantido. Eu sou mais incisivo: o teto de gastos precisa mudar porque condenou o Brasil a dar certo.
Como assim?
Muita gente argumenta que o governo deveria cortar subsídios ou aumentar tributação para compensar a mudança no teto. O próprio ministro da Fazenda tentou emplacar uma reforma de IR que aumentava a arrecadação. Isso viola a ideia básica que guiou a criação do teto: a arrecadação ser aquela suficiente para bancar as despesas do governo. O importante é controlar o crescimento dos gastos. Então, não adianta tentar aumentar a arrecadação para melhorar a situação fiscal, já que Brasília não gosta de voltar atrás nos gastos. Ao contrário de uma família que, quando perde renda, diminuiu despesas, o governo, quando perde renda, resiste em cortar gastos e o déficit aumenta. Não podemos perder de vista que foi essa resistência que resultou na criação do teto. Depois de anos de governos do PT, quando as despesas aumentaram 6% acima da inflação, acompanhando o aumento das receitas, veio a recessão. E o que a equipe econômica sugeriu? Que não era preciso cortar gastos, mas só colocar na Constituição que eles não poderiam crescer para além da inflação. Michel Temer concordou, na base do “tem que manter isso aí (os gastos)”, e assim nasceu o teto. Diante dessa, digamos, solução, o mercado se acalmou com trajetória da dívida.
E não dá para “manter isso aí”?
Manter os gastos ajustados pela inflação é poderoso, porque transmite a ideia de que o governo não vai cortar a ajuda que dá. Do ponto vista estritamente político, essa é uma mensagem fundamental, mas todo contribuinte sabe o quanto custa caro essa “ajuda”. É preciso incutir racionalidade nessa equação, fazer projeções, levando em conta outras variantes.
Que tipo de projeção?
Vamos fazer um exercício de aritmética financeira, partindo do pressuposto de que o Brasil pode crescer em média 3% ao ano nas próximas duas décadas…
Parece uma projeção otimista: em 2021, o PIB cresceu 4,6%, depois de encolher 3,9% em 2020, por causa da pandemia. Em 2019, antes da crise sanitária, aumentou 1,9%, uma porcentagem pífia. Só entre 2007 e 2010, a média foi acima de 4%.
Acho que 3% é uma média realista: não tão baixa como a da velha e rica Europa, nem tão ambiciosa como a dos tigres asiáticos e seu felino maior, a China. É o Brasil. Pois bem, como está hoje, assumindo um crescimento médio de 3% do PIB e pagando um juro real da dívida de 3%, teremos os seguintes indicadores em 2042: crescimento acumulado do PIB de 75%; dívida bruta zerada em 2036; dívida bruta negativa de 125% do PIB; redução do tamanho relativo do estado de 33% para 19% do PIB. E essas premissas são conservadoras, já que as interações econômicas desse processo durante 20 anos tendem a acelerar o crescimento e criar um feedback positivo nas contas públicas.
Então, o negócio é manter isso aí.
Aí é que está: esse modelo, por mais atraente que pareça no papel, vai ser ameaçado constantemente pelas forças políticas que querem se apropriar de parte desses ganhos. O projeto cruza a fronteira do ambicioso e se torna ganancioso. Ambição é sonhar com algo grande, ganância é querer ficar com tudo.
Bom, as forças políticas não se tornarão menos gananciosas, a menos que o Brasil vire a Dinamarca.
Por isso mesmo, a minha proposta é uma reforma do teto. Mas uma reforma que contemple o nosso habitat político. A primeira medida seria dividir os ganhos do teto com a sociedade. A partir de 2027, incorporar ao teto 50% do crescimento do PIB nos 4 anos anteriores, divididos em 4 parcelas anuais. Dessa forma, o teto dos gastos seria atualizado em metade do crescimento médio do PIB em 4 anos. Ao invés de correr o risco de ver os chefes do Executivo ou Legislativo tentando furar o teto de 4 em 4 anos, muito provavelmente no ano anterior à eleição presidencial, marque uma data de ajuste antecipadamente. Nessa linha de raciocínio, mantendo as premissas de 3% de crescimento e 3% de juros reais, em duas décadas, teríamos o mesmo crescimento acumulado do PIB de 75%; dívida bruta zerada em 2039; dívida bruta negativa de 60% do PIB e redução do estado para menos de 24% do PIB, como no início do Plano Real.
A sua proposta é, então, aumentar o teto.
Não, é transformar a sociedade em, de fato, sociedade. O governo passaria a ter sócios no crescimento do PIB: o povo e os seus políticos eleitos, responsáveis por alocar esses ganhos. Como sócios, a classe política teria de lutar para manter o crescimento do país. Assim como em um jogo cooperativo, onde os jogadores negociam entre si, pode-se chegar a um acordo que beneficie a todos da melhor forma possível. Ou seja, aquele onde nenhuma das partes envolvidas é motivada a escolher um resultado diferente, visto que o seu payoff, ou benefício, não pode ser melhorado, apenas piorado, se uma delas perde. É o princípio da Teoria dos Jogos.
Seria aplicar a Teoria dos Jogos num jogo de cartas marcadas, não?
Veja, sem um acordo como esse, a sociedade é menos beneficiada por gastos exíguos e menores investimentos públicos, o que limita o seu desenvolvimento de longo prazo, mantendo ou mesmo ampliando disparidades socioeconômicas. Do seu lado, governos e políticos têm menos chances de reeleição, visto que têm suas verbas tolhidas e menor chance de cumprir promessas de campanha. Há, ainda, um aumento dos riscos fiscais, com as sucessivas tentativas de romper o teto de gastos, visto que é frágil a forma como ele foi originalmente criado. Tal fragilidade pode ser comprovada nos acontecimentos recentes de negociações orçamentárias fora do teto.
Você falou que a primeira medida seria dividir os ganhos do teto com a sociedade. E a segunda?
Dividir o superávit primário com o contribuinte a cada ciclo de 4 anos. Precisamos olhar para outro grande conflito que surge quando há excesso de arrecadação: o superavit primário quita a dívida pública. Em 2027, Brasil vai gerar 4% de superavit primário. Esse dinheiro vai atrair o interesse de Brasília. O pretexto de que não podemos sacrificar os mais pobres para pagar os credores sempre terá apelo popular. O ponto é que não é preciso pagar a dívida pública tão rapidamente. Em vez de dizer que pelo menos 50% do superávit primário será destinado para pagar dívida, afirme que 50%, no mínimo, serão utilizados para reduzir impostos. Além de adicionar um novo aliado ao projeto, o contribuinte, isso ainda transmitirá a sensação de ganho direto para a população. Uma vez que as perdas são sentidas de forma mais intensa que os ganhos, e o uso do superávit primário para pagar a dívida pode ser visto como uma perda (pois o dinheiro não volta diretamente para a sociedade), a simples proposição de usar esse dinheiro para reduzir impostos, um ganho para a população, traria mais apoio.
A verdadeira reforma tributária é diminuir impostos.
Exatamente. A minha proposta não se baseia apenas em teoria econômica, mas na história também. Ora, afinal de contas, a história não se repete, mas rima, como diria o escritor Mark Twain. Em artigo publicado em 2004, Arthur Laffer conclui que uma redução da carga tributária não só estimula o crescimento da economia, como eleva as receitas do estado, visto que incentiva a produção — que, por sua vez, reduz o desemprego, eleva a renda e, assim, reduz a necessidade de programas de auxílio social, cortando gastos do governo. Tal dinâmica fica evidente em três momentos nos Estados Unidos, onde a história pareceu, de fato, rimar: em 1925, 1963 e 1981, quando houve redução de alíquotas de imposto e os impactos no PIB, arrecadação e desemprego foram positivos.
Qual seria o primeiro imposto a ser cortado?
Os impostos que incidem sobre o faturamento deveriam ser os primeiros. Isso geraria um efeito direto sobre inflação, reforçando o apoio da população ao modelo econômico.
E como o Tesouro ganharia?
Os valores distribuídos pelo Tesouro se dariam após os ganho auferidos. Ou seja, enquanto os ganhos estão sendo construídos, o detentor desses valores, ou float, é o Tesouro. Uma vez colhidos os frutos provenientes das medidas propostas, tais valores seriam distribuídos para os contribuintes e a classe política. Com isso, o Tesouro ganha de duas formas: a primeira delas seria com o float e, a segunda, por meio da queda dos juros de equilíbrio, resultando num menor serviço da dívida e liberando mais recursos para serem aplicados de formas mais produtivas. Teríamos, desse modo, um plano crível, com o maior alinhamento possível entre as partes interessadas: tesouro, classe política e contribuintes. Com a adoção dessas duas medidas, daria para adotar uma terceira. O grand finale.
Qual seria o grand finale?
Acabar com o teto de gastos em dezembro de 2042, sem que haja revisão como previsto nas bases atuais. A definição de inferno é infinito sofrer. O teto de gastos tem que ter data para acabar de verdade. Não tão curta que não seja a solução definitiva. Não tão longa que pareça eterna. Esta geração vai entregar um Brasil melhor do que recebeu. A sugestão é um prazo de 20 anos para acabar com o teto de gastos. Ou 5 mandatos de 4 anos.
Em certo meios, você vai soar como um Joãozinho Trinta dizendo que quem gosta de teto de gastos é economista do Insper.
Quem está fazendo carnaval com o teto de gastos não sou eu. As premissas que expus aqui são até conservadoras. Elas não incorporam dois fenômenos que reforçam a tendência: a queda acentuada dos juros de equilíbrio e o maior crescimento da economia. Só a redução dos juros de equilíbrio de 3% para 1% faria a dívida bruta cair de 69% para 37%, em 20 anos. Se considerarmos que o crescimento do PIB pode saltar de 3% para 4% ao ano, a dívida ficaria negativa em 10%. Se combinarmos os dois, os efeitos se multiplicam e, ao manter todas as partes se beneficiando desse crescimento, agregam-se sócios ao projeto, que não será desmantelado a cada ciclo eleitoral. Ninguém arriscará mudar o modelo para perder. A mensagem final é que a proposta do teto dos gastos tem que ser mudada e metade dos ganhos vai ser revertida para a população, por meio do Congresso, e metade será devolvida ao contribuinte, por meio do Executivo. O Tesouro ficará feliz e o mercado entenderá que o modelo é viável e antifrágil.
Os comentários não representam a opinião do site; a responsabilidade pelo conteúdo postado é do autor da mensagem.
Comentários (0)