Jerônimo Teixeira na Crusoé: Como Bolsonaro radicalizou o pobre-diabo
Um ensaio sobre obras literárias protagonizadas por figuras miúdas abre caminhos para entender o lugar social dos baderneiros que o ex-presidente deseja anistiar
O bolsonarismo dispensou seu mártir.
Em novembro do ano passado, a Horda Canarinha reuniu-se na avenida Paulista para homenagear Cleriston Pereira da Cunha, que morrera no Complexo Penitenciário da Papuda, em Brasília. Participante da intentona tonta do 8 de janeiro, ele esteve entre aqueles que invadiram e depredaram o Congresso, segundo denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR). Jair Bolsonaro não compareceu ao ato.
Duas semanas atrás, Bolsonaro carregou uma multidão bem maior para a Paulista. Até onde vi, o único que mencionou Cleriston nos discursos do dia foi Silas Malafaia. Ele lembrou que Clezão, como era conhecido, foi membro de sua igreja, e disse que o sangue do morto está nas mãos de Alexandre de Moraes (a PGR havia recomendado a liberdade provisória de Cleriston, devido a sua condição delicada de saúde, mas o pedido ficou esquecido em uma gaveta do ministro). O pastor só não sabia o nome correto de sua ovelha: chamou-o de Clésio.
Provável futuro réu do STF, Bolsonaro não julgou prudente associar Alexandre de Moraes a Lady Macbeth. Preferiu pedir que o passado seja apagado (teimoso, o passado voltaria ao noticiário uma semana depois, no depoimento do general Freire Gomes à PF). Não citou Cleriston (nem Cleison), mas propôs que o Congresso anistie os baderneiros que seguem na Papuda. Não é razoável, disse, que se puna com tanto rigor “esses pobres diabos que estavam lá no 8 de janeiro de 2023”. Entre um e outro ato na Paulista, Cleriston foi de mártir singular a integrante anônimo de uma malta de pobres diabos.
Mas me corrijo: na verdade, a expressão que Bolsonaro empregou foi “pobres coitados”. Seria gafe imperdoável falar em “pobres diabos” ao lado do pastor Malafaia – que, afinal, está bem longe de ser pobre.
Como o coitado geralmente é pobre, e vice-versa, “pobre coitado” é quase um pleonasmo. Prefiro a ambiguidade dos termos que usei por engano.
Leia mais aqui; assine Crusoé e apoie o jornalismo independente.
Os comentários não representam a opinião do site; a responsabilidade pelo conteúdo postado é do autor da mensagem.
Comentários (0)