Os efeitos mortais das fantasias bolsotrumpistas
Em meu artigo “Dom Bolsonaro del Centrão”, publicado em 25 de setembro de 2020 na Crusoé, usei uma análise do filósofo Eric Voegelin sobre o totalitarismo, feita a partir da parvoíce de Dom Quixote, para descrever a “segunda realidade” na qual uma parcela dos brasileiros está disposta a viver: a do fantástico mundo da propaganda política de ativistas de redes sociais e de emissoras que...
Em meu artigo “Dom Bolsonaro del Centrão”, publicado em 25 de setembro de 2020 na Crusoé, usei uma análise do filósofo Eric Voegelin sobre o totalitarismo, feita a partir da parvoíce de Dom Quixote, para descrever a “segunda realidade” na qual uma parcela dos brasileiros está disposta a viver: a do fantástico mundo da propaganda política de ativistas de redes sociais e de emissoras que recebem Bolsa Pano do governo federal.
O fenômeno virtual, claro, não é exclusivo do Brasil, nem dos bolsonaristas. Cerca de dois meses e meio depois, em 12 de dezembro, Ross Douthat, colunista do New York Times também capaz de notar parvoíces de esquerda e direita, repudiando vandalismos de ambos, publicou um artigo sobre o cultivo do que ele chamou de “dreampolitik”.
Para Douthat, a fantasia política pode até servir como “substituto para a ação radical no mundo real”, porque “existem maneiras em que a internet, especialmente, parece conter e redirecionar o mesmo extremismo que nutre, empurrando-o para memes, hashtags e guerras de mídia social, em vez de revoluções reais, dando-nos [as militantes trumpistas] Diamond e Silk tuitando sobre um golpe militar em vez da coisa em si”.
“Nessa teoria, certos tipos de fantasia partidária podem na verdade ser forças estabilizadoras, permitindo que as pessoas satisfaçam seus impulsos ideológicos participando de uma história em que seu lado está sempre à beira de uma grande vitória (…) ou (…) em que seus inimigos políticos estão prestes a fazer algo inacreditavelmente terrível que justificaria todos os seus medos e os faria felizes em seu ódio. Crucialmente, como em certos cultos famosos, o fracasso dessas profecias não desfaz a história. Exige apenas mais elaboração e adaptação, fantasias mais criativas.”
“Por outro lado”, prosseguiu o autor, referindo-se indiretamente aos atos incendiários do movimento Black Lives Matter após George Floyd ser morto por um policial, “vimos durante o verão como (…) a fantasia política da esquerda poderia escapar do mundo dos sonhos da academia e do ativismo online, contribuindo para a violência e expurgos no mundo real (…). A abolição da polícia e as apologias para os tumultos pertenciam ao reino da fantasia ideológica até que vieram à tona; e, se certos impulsos de esquerda voltaram a ser fantásticos nos meses seguintes, a memória de maio e junho permanece”.
Já no fim de 2020, a “dreampolitik” se ampliou e aprofundou com a cisão pós-eleitoral dos republicanos entre os que rejeitam as acusações de fraude feitas por Donald Trump e aquele “bando de sabotadores” que insiste na teoria conspiratória da eleição roubada.
“A crença republicana na fraude eleitoral é semelhante à crença democrata de que o hackeamento russo mudou o total de votos” em 2016, escreveu Douthat. “A diferença, porém, é que a fantasia da direita foi abraçada desde o início por um presidente (…) e penetrou muito mais rápido e mais profundamente no aparato partidário. Em janeiro de 2017, apenas um punhado de democratas do baixo clero se opôs à certificação da eleição de Trump pelo Congresso. Mas você pode encontrar o nome do líder da minoria na Câmara, Kevin McCarthy, em petição de apoio ao ridículo processo do Texas. Esse relatório não convenceu a Suprema Corte, [Joe] Biden será presidente, e os republicanos que se inscreveram para a fantasia foram protegidos de sua loucura, mais uma vez, por republicanos com responsabilidade real – neste caso, Brett Kavanaugh, Amy Coney Barrett, Neil Gorsuch e John Roberts”, ministros da Suprema Corte indicados pelo próprio Trump e por George W. Bush, como também comentei na ocasião.
“Mas é razoável imaginar por quanto tempo isso pode durar – se a ‘dreampolitik’ e a ‘realpolitik’ [a política real] podem continuar permanentemente em trilhas separadas, esbarrando uma na outra de vez em quando sem uma colisão séria, ou se, eventualmente, as narrativas do mundo dos sonhos forçarão uma crise no mundo real.”
Não demorou nem um mês, sabemos agora, para acontecer uma séria colisão. Incitados pela narrativas fantasiosas de Trump, apoiadores do presidente invadiram a realidade do Capitólio, a sede do Congresso americano, para impedir a certificação da vitória de Biden no Colégio Eleitoral. O ato golpista resultou em cinco mortes, mas, passadas as cenas de horror, a certificação foi concluída com a retomada da sessão. Ameaçado de afastamento do cargo e responsabilização criminal, Trump teve de baixar o tom gradativamente. Primeiro, prometeu “uma transição pacífica em 20 de janeiro”, dia da posse do rival. Depois, repudiou os “atos de violência e destruição” que havia incitado.
Neste meio-tempo, Jair Bolsonaro legitimou moralmente a invasão, sob alegação de “falta de confiança no voto” e de que “houve gente que votou três, quatro vezes, mortos votaram”. “Se nós não tivermos o voto impresso em 2022, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”, ameaçou o presidente trumpista, preparando sua fantasia política para o caso de eventual derrota. Bolsonaro ainda reiterou, sempre sem provas, que a eleição de 2018, vencida por ele próprio no segundo turno, foi fraudada e que ele venceu no primeiro. Só faltou pintar o rosto, vestir chapéu de pele com chifres e luvas pretas, empunhar uma lança e tirar selfie no TSE para arrasar no 4chan com os demais membros do fórum propagador da QAnon, teoria da guerra secreta contra pedófilos adoradores de Satanás que controlam o mundo.
Enquanto isso, a primeira realidade brasileira – a do avanço da pandemia de Covid-19 e do atraso federal no processo de vacinação – vai se impondo e demolindo todos os pilares da segunda realidade, a ‘dreampolitik’ do negacionismo bolsonarista. Dezenas de países, incluindo os governos da direita americana, israelense e britânica, já vacinaram milhões de cidadãos, os dois últimos anunciaram o terceiro lockdown, o do Reino Unido já tem três vacinas aprovadas (Pfizer, AstraZeneca e Moderna); mas o do lanterna Dom Bolsonaro Del Centrão, que ignorou a Pfizer em agosto de 2020 e cancelou compra de seringas no começo de 2021 porque o preço já estava alto, só agora anunciou aquisição da vacina do Instituto Butantan, da qual o presidente desdenhara. O governo “não vai comprar a tua vacina também não, talkey”, “procura outro para pagar a tua vacina aí”, havia dito Bolsonaro em “live”, dirigindo-se ao desafeto João Doria.
A superação da marca evitável de 200 mil mortes por Covid-19 no Brasil é o resultado parcial de uma série ininterrupta de colisões do fantástico mundo do bolsonarismo com o mundo real – este que, ao contrário do ministro da suposta Saúde, Eduardo Pazuello, não se curva à parvoíce do cavaleiro andante e nadante do Palácio do Planalto.
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