Oruam soletrou Comando Vermelho ao contrário
Manifesto no Lollapalooza mostra que o filho de Marcinho VP não entendeu nada, mas seu pedido de liberdade para o pai resume a tragédia brasileira
O Brasil foi apresentado no Lollapalooza ao rapper Oruam (foto). “Rolé na favela de nave, o som no último volume, vou brotar no baile mais tarde, vou usar um lança perfume, botar a Glock pra dar um rolé pras piranha vê um volume, é que na selva do urso sabe que nós é o assunto”, diz a letra de “Rolé na Favela de Nave”, conhecida pelos fãs do gênero e por uma legião de celebridades, como Neymar e Pedro Scooby.
Oruam é o “filho do dono”, como diz o título de outra de suas músicas. O dono é Marcinho VP, chefe do Comando Vermelho (CV). Nessa letra, Mauro (Oruam é a versão de trás para frente) Davi dos Santos Nepomuceno diz o seguinte: “O Estado é genocida com o morador. Não tenho medo, eu sou filho do dono. Maior responsa de sujeito homem, de carro bicho eu fiz ela endoidar. E hoje onde eu passo todas quer me dar”.
Em sua apresentação no Lollapalooza, o filho do dono usou uma camiseta que unia uma foto do dono à palavra “liberdade”. Marcinho VP foi condenado a um total de 44 anos de prisão por crimes como homicídio qualificado e tráfico de drogas, e, mesmo preso em um presídio de segurança máxima em Catanduvas (PR), segue apontado como líder do CV. Ele também é acusado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro dos crimes de associação criminosa e lavagem de dinheiro em outro processo.
“Honra teu pai e tua mãe“
Após a repercussão sobre a camiseta, Oruam foi às redes sociais se explicar. Postou uma passagem bíblica — “Êxodo 20:12: ‘Honra teu pai e tua mãe, a fim de que tenhas vida longa na terra que o Senhor, teu Deus, te dá’” — e um longo texto, que chamou de nota oficial e classificou como “só um desabafo de um menor que cresceu sem ter o seu pai perto”.
A nota dizia: “Meu pai foi preso com 20 anos, quase 30 anos atrás. Há mais de 15 anos, vive trancado numa cela de 6 metros quadrados, com 2 horas de banho de sol por dia, quando é autorizado, e sem contato com nenhuma outra pessoa que não os carcereiros. Eu e minha família podemos, quando é autorizado, vê-lo uma vez por mês, por poucas horas, e através de um vidro, sem nenhum contato físico”.
“Minha vida é assim desde que sou uma criança. Não tenho uma foto sequer com meu pai, e muito menos tive o prazer de desfrutar de coisas simples com meu pai. A cadeia deveria servir para ressocializar e não para torturar”, segue o texto, num discurso clássico que não se adequa exatamente a casos com o de Marcinho VP.
Esquartejados
Márcio Nepomuceno dos Santos foi condenado a 36 anos de prisão em 2007 por mandar esquartejar os traficantes rivais André Luis dos Santos Jorge, conhecido como Dequinha, e Rubem Ferreira de Andrade, o famoso Rubinho, em outubro de 1996. Os pedaços dos corpos dos rivais que planejavam comandar o tráfico no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, a mando de Leite Ninho, foram encontrados dentro de um bueiro, a imagem evocada pela reportagem de capa desta semana de Crusoé, sobre o crime organizado no Rio.
“Meu pai errou, mas está pagando pelos seus erros e com sobra. Só queria que pudesse cumprir uma pena digna e saísse de cabeça erguida. Que quando chegue sua hora, você possa ter sua liberdade! E que o estado realmente deixe você vir como é de direito. Afinal, todos sabem que você já pagou sua pena”, segue Oruam, entrando em contradição.
A polícia suspeita que Marcinho VP trocou a cúpula do Comando Vermelho no Rio no fim de 2023, com uma ordem dada de dentro da cadeia. Sua defesa nega. O pai de Oruam não conseguirá cumprir uma pena digna enquanto seguir sendo identificado como chefe de uma das maiores facções criminosas do país, e também não se pode dizer que já tenha pagado sua sentença nessas condições.
O mesmo vale para Marcola, Fernandinho Beira-Mar e Mano G, um dos líderes da Família do Norte. Se conseguem mandar de dentro da prisão, o que fariam do lado de fora?
“O maior sonho”
É nesses pormenores que o gesto de Oruam no Lollapalooza se revela como um manifesto ingênuo, de alguém que cresceu em meio ao submundo carioca sem saber como a vida poderia ser diferente. O filho de Marcinho VP não entendeu nada, e, por isso, seu gesto é mais eloquente e trágico do que seria um desafio aberto ao Estado brasileiro.
Não há saída de onde ele foi criado. É o mesmo lugar — não exatamente físico, mas legal e moral — de falência do Estado onde foi executada a vereadora Marielle Franco, e onde a investigação sobre sua morte foi atrapalhada dentro das próprias instituições responsáveis por prestar contas à sociedade, com a irônica colaboração da família, a mais interessada na resolução do crime, vendada pela disputa política.
“Amar meu pai e honrar ele”
“Não tentem tirar de uma pessoa o direito de reivindicar condições melhores pro seu pai, e nem de querer vê-lo em liberdade. Te amo, pai. O maior sonho da nossa família é ter você com nós. Estamos ansiosos pra que você veja o futuro novo que estamos construindo e mostre que todo mundo merece uma segunda chance. Parem de tirar meu direito de filho de amar meu pai e honrar ele”, pede o rapper na nota, e nisso não há problema mesmo.
Mas, em outra postagem, em resposta a comentários sobre sua manifestação no Lolla, Oruam rebateu: “Minha mãe sempre disse que pra mim ia ser tudo mais difícil e eu não entendia o que ela falava. Hoje eu entendo”. Se tivesse entendido, não teria usado a oportunidade de se libertar, que a música lhe oferece, para se trancar junto do pai atrás das grades.
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