Liberalismo e cristianismo contra a intolerância da religião Woke
Raça, gênero e sexualidade são a trindade da religião woke. Há em cada uma delas e na relação entre as três contradições e mistérios que não podem ser questionados, como em todo dogma. É preciso aceitar, repetir, pregar e converter; jamais blasfemar, sob pena de ser excomungado
Em meio às guerras religiosas do século XVI e XVII, o ponto de vista liberal apresentado por John Locke na sua Carta acerca da tolerância preconizava que não cabe ao Estado dizer qual a religião certa, não é da alçada do poder político determinar a concepção de bem das pessoas, não compete ao governo intrometer-se na crença pessoal ou ditar quais valores devem reger a vida privada de alguém.
Isso equivale a dizer que é preciso ser tolerante com concepções de vida distintas das nossas e que aquilo que pode circular como opinião livre e individual não deve ser regulado ou imposto pelo Estado.
À defesa da tolerância vincula-se a noção de pluralismo, que, por sua vez, vai ser entendido dentro de uma perspectiva liberal como um aspecto positivo, capaz de fazer florescer a sociedade.
Sendo o pluralismo mais eficiente do que qualquer ordem natural ou qualquer ordem artificial nos domínios da ciência, da política e da economia, ele deu ao Ocidente uma potência de desenvolvimento sem precedentes. A tolerância e o pluralismo não apenas moldaram o Ocidente, mas também fizeram-no progredir.
Esses valores, porém, foram postos em xeque. Nas últimas décadas, a defesa da tolerância e do pluralismo deixou de ser efetiva para se tornar mera retórica. Retórica essa que, paradoxalmente, formatou novas formas de autoritarismo.
Sob o pretexto de defesa das minorias, a nova esquerda passou a usar sua hegemonia cultural e seu poder político para policiar a linguagem e o comportamento, passando a pressionar a mídia, as universidades, os setores artísticos e o mundo corporativo a fim de obter a padronização do discurso e a homogeneização do pensamento.
A ideologia woke
O wokismo é uma forma de ativismo político, uma ideologia liberticida que pouco tem a ver com a proteção dos marginalizados, embora use esse artifício como ornamento retórico.
Tendo como pano de fundo teorias neo-marxistas, como a teoria crítica da sociedade, teses sobre micropoder de Michel Foucault ou o pensamento pós-moderno de modo geral, os militantes woke acreditam que há sistemas invisíveis de poder baseados na identidade, nos quais todos nós fomos socializados. Eles seriam despertos (woke) porque estariam conscientes disso.
Com o despertar crítico, viria a responsabilidade, a práxis, a necessidade de denunciar os sistemas de poder e as formas de opressão baseadas na identidade; “branquitude”, “patriarcado”, “colonialismo”, “heteronormatividade”, etc. passam a ser chaves para interpretar e patrulhar a linguagem e as interações sociais.
Conscientes de que a linguagem serviria a sistemas invisíveis do poder opressor, os militantes woke exigem uma forma politicamente correta de falar e acendem a fogueira inquisitorial para quem resistir à nova linguagem.
Para isso contam com a inestimável ajuda de juízes iluminados, socialmente despertos e politicamente engajados. São eles que transformam, por exemplo, neologismos como “transfobia” em crimes ou que decidem o que vem a ser ou não um “discurso de ódio.”
Raça, gênero e sexualidade são a trindade da religião woke. Há em cada uma delas e na relação entre as três contradições e mistérios que não podem ser questionados, como em todo dogma. É preciso aceitar, repetir, pregar e converter; jamais blasfemar, sob pena de ser excomungado.
O wokismo é uma histeria coletiva do Ocidente ou o sintoma da crise de uma civilização que abriu mão da consciência de si e que se apartou do seu próprio sentido.
O radicalismo intolerante da visão de mundo woke está fazendo a nossa sociedade estagnar. Além disso, está alimentando o seu alter, que supõe combater: o identitarismo de direita efetivamente racista e xenófobo.
A cada manifestação woke que tenta nos fazer aceitar que todas as pessoas brancas são racistas, que a masculinidade é patológica, que o sexo não é biológico, que há tantos gêneros quanto cores do arco-íris, que o ocidente é opressor e que tudo precisa ser descolonizado, surgem novos políticos populistas de direita capazes de canalizar e instrumentalizar a raiva das pessoas comuns contra semelhantes bobagens.
Política e religião
Costuma-se associar, não sem razão, o espectro político da direita a uma instrumentalização política da fé cristã. De fato, há uma direita tradicionalista, anti-iluminista e iliberal que considera ruim a emancipação dos governos temporais em relação à autoridade religiosa e rejeita o processo de laicização, condenando esse e outros aspectos da modernidade.
Mas a crítica à mentalidade revolucionária de esquerda pode se expressar como tendência liberal-conservadora que não se confunde com o furor reacionário.
O reacionarismo caracteriza-se pela tentativa política de retornar a um tempo anterior ao Iluminismo e às revoluções liberais, quando o poder religioso silenciava divergências políticas coroando aqueles que se curvavam aos seus dogmas em troca das regalias do poder transitório e secular. Não é isso que defendemos.
O cristianismo, outrora vivenciado pelos mártires como testemunho de fé perante um Estado opressor, tornou-se, ele mesmo, religião perseguidora, geradora de discórdia e desavenças políticas.
A despeito disso, por mais estranho que possa parecer aos ouvidos leigos ou laicos, o próprio laicismo tem raízes cristãs e assenta-se na responsabilidade do indivíduo perante sua própria consciência, que não se pode subordinar nem ao poder do rei, nem ao poder do clero.
O Ocidente está moldado pela sua herança cristã. Essa herança precisa ser considerada e valorizada. Nossa política pressupõe respeito às liberdades individuais e aos direitos humanos, princípios que floresceram porque o cristianismo triunfou e fez com que esses valores fossem internalizados individualmente e incorporados socialmente através das leis.
O importante, porém, não é resgatar o cristianismo em seu papel político, posto que o próprio liberalismo começa com essa recusa. O importante é recuperar a identidade cristã do Ocidente para que os desvarios do pensamento ideológico do momento não se transfigure em uma religião oficial.
Enquanto não aceitarmos o fato de que o cristianismo formatou e ainda formata a consciência moral do Ocidente, abriremos espaço para questionamentos dos princípios liberais, pelo simples fato de que aqueles que compõem o Estado atuarão através dele para impor suas crenças.
O princípio liberal do pluralismo e do estado neutro precisa ser protegido, inclusive, daqueles que, por paradoxal que isso possa parecer, querem fazer do secularismo uma nova religião e fundar o Estado ateu.
Cristianismo e democracia
O político e o religioso são dois âmbitos que não se confundem. A religião, porém, pode ser o sentimento necessário para que a política funcione dentro de certos parâmetros adequados a uma civilização ética, equilibrada e madura.
A relação entre o cristianismo e a democracia é muito mais de influxo e de impulso. Aos homens competem reger sua própria vida sob o escrutínio de leis estabelecidas por eles mesmos. Mas no momento em que essas leis perdem o parâmetro transcendente da justiça, elas correm o sério risco de se tornaram tirânicas e perversas.
Fora do liberalismo democrático, há o regime do tirano ateu ou do teocrata perverso. O mundo, nesse momento, está fazendo uma escolha. O resgate do sentido profundo do Ocidente é uma forma de escolher com consciência e agir melhor.
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