A música das massas
Dois mil e treze é o ano em que as massas tomam as ruas do Brasil e não deixam mais de ocupá-las periodicamente. Há uma marca visível do medo provocado por essas manifestações: até hoje a Praça dos Três Poderes tem barricadas em ambos os lados (tanto em frente ao prédio do STF quanto do Palácio do Planalto). Tais barricadas nunca foram previstas no projeto de...
Dois mil e treze é o ano em que as massas tomam as ruas do Brasil e não deixam mais de ocupá-las periodicamente. Há uma marca visível do medo provocado por essas manifestações: até hoje a Praça dos Três Poderes tem barricadas em ambos os lados (tanto em frente ao prédio do STF quanto do Palácio do Planalto). Tais barricadas nunca foram previstas no projeto de Brasília. Pelo contrário: o projeto da cidade previa um ambiente de circulação livre.
As barricadas também estão em frente à Prefeitura de São Paulo. Permanecem ali desde as Jornadas de Junho de 2013, naquela que foi a maior manifestação de rua da história do país até aquele momento, e que deixou um rastro de destruição. A Prefeitura de São Paulo por pouco não foi invadida, chegando a ser depredada. Igualmente o Palácio do Itamaraty e o Congresso Nacional, em Brasília.
Existe um livro imprescindível para entender tais manifestações coletivas: Massa e Poder, de Elias Canetti. O livro é uma gênese da psicologia das massas. “Não há nada que o homem tema mais do que o contato com o desconhecido”, diz Canetti. É por isso que os homens se fecham em casas com cadeados, portões, muros. No Brasil, por causa dos elevados índices de violência, o temor do desconhecido é ainda mais exacerbado.
Porém, na massa, o temor é invertido. É por isso que ela tenta concentrar-se ao máximo, pois o objetivo é libertar-se do temor individual do contato.
Talvez porque no nosso país o temor do desconhecido é maior, causado pela violência urbana, o instinto oposto, de libertar-se desse temor, tenha provocado manifestações tão expressivas. As Jornadas de Junho, logo superadas por aquelas em favor do impeachment de Dilma, estão entre as maiores manifestações de massa da história recente em todo o mundo.
E os temas dessas manifestações, tais quais os temas musicais de uma sinfonia de Sibelius, por exemplo, se repetem num contínuo desde 2013: as pautas anticorrupção, o ódio à imprensa tradicional, o patriotismo, o sentimento antiestablishment.
A música das massas é a sinfonia. Mais especificamente, a sinfonia romântica e pós-romântica. Antes disso, com Haydn e Mozart, por exemplo, a sinfonia era mais camerística. A música de câmara, composta para poucos instrumentos, é a música dos sentimentos íntimos e pessoais. A música sinfônica é a música dos sentimentos coletivos, nacionais, e dos movimentos de massas.
É que a primeira sinfonia romântica, a Terceira de Beethoven, foi escrita no contexto das Invasões Napoleônicas. Dedicada inicialmente a Napoleão, a dedicatória foi riscada pelo compositor.
A figura de Napoleão, e sua tentativa de conquistar a Europa, inspirou artistas por todo o mundo. Honoré de Balzac, quando fez sua Comédia Humana, com mais de mil personagens, comparou sua ambição à de Napoleão: enquanto este dominou o mundo, aquele pretendia criá-lo com sua imaginação. Seus personagens vivem no universo pós-revolucionário, com novas perspectivas de ascensão social, e com a novidade da imprensa.
Em Os Miseráveis, Victor Hugo retratou igualmente o mundo pós-revolucionário, chacoalhado pela Revolução e pelas Invasões Napoleônicas. Os destinos individuais dos personagens do livro convivem com os grandes fatos coletivos ou os ecoam.
Uma certa sensibilidade artística nasceu desse contexto histórico. A grandeza da dimensão dos fatos exigia uma arte à altura. No Brasil de hoje, em que as massas tomaram a dianteira, alterando drasticamente o cenário político, haverá uma arte à altura de retratá-la?
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