Josias Teófilo estreia em O Antagonista
Documentarista e escritor, o pernambucano Josias Teófilo estreia hoje como articulista de O Antagonista, ampliando as fronteiras do debate sobre a produção cultural brasileira. Em seu primeiro artigo, o cineasta relembra o papel fundamental e solitário do intelectual Bruno Tolentino ao rejeitar a Tropicália como herdeira da Semana de 22...
Documentarista e escritor, o pernambucano Josias Teófilo estreia hoje como articulista de O Antagonista, ampliando as fronteiras do debate sobre a produção cultural brasileira. Em seu primeiro artigo, o cineasta relembra o papel fundamental e solitário do intelectual Bruno Tolentino ao rejeitar a Tropicália como herdeira da Semana de 22 e defender outro caminho na construção da identidade nacional.
“O ano é 1996. A revista Veja publica a entrevista intitulada ‘Quero meu país de volta’, com o poeta Bruno Tolentino. Ele retornava ao Brasil após quase 30 anos morando na Inglaterra. O país que ele encontrou enfrentava graves problemas estruturais, urbanos, de criminalidade, mas não era a isso que ele se referia, e sim ao estado da cultura brasileira.
Tolentino reclamava uma herança. De família aristocrática (o avô tinha sido conselheiro do Império, os tios eram intelectuais, era primo de Barbara Heliodora e Antonio Candido), teve contato pessoal, desde cedo, com o melhor do que o país produziu em cultura. Conheceu Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, Cecília Meireles. Dizia que jamais tinha pensado o próprio país como inferior, emergente, ou de Terceiro Mundo. A cultura brasileira daquela época – especialmente a literatura e a música – não devia nada ao que era feito nos grandes centros.
Ao chegar ao Brasil em 1993, após a redemocratização, ele encontra um cenário completamente diferente. Não se distinguia mais cultura de entretenimento, poesia de letra de música. A música popular fora posta num lugar que não lhe era devido. A imprensa e a academia estavam dominadas por grupos de influência que consagraram o legado da Semana de 22, da Tropicália e do Modernismo: era como se a cultura brasileira tivesse, necessariamente, de partir desses marcos.
A explicação que Tolentino dava para esse estado de coisas era a seguinte: após o golpe de 1964, a USP, principal universidade do país, deu uma resposta no âmbito intelectual, gerando uma espécie de contragolpe que resultou numa hegemonia de pensamento. A esquerda, que lutava contra a ditadura, foi legitimada nesse contexto por ser oposição. O contragolpe intelectual estava em plena vigência naquele Brasil da década de 1990. Alguns grupos dominavam o cenário cultural a ponto de poder determinar o que era produzido, o que circulava, quem era ouvido, o que era cultura brasileira e o que era cultura regional.
A abertura política do país não teve equivalente no meio cultural. ‘Na República das letras ainda estamos à espera das Diretas Já’, dizia Tolentino. Não à toa que Fernando Henrique Cardoso, no discurso de posse, citou não Machado de Assis ou Euclides da Cunha, mas Caetano Veloso. A própria reação à entrevista de Tolentino, com abaixo-assinados que pediam censura ao poeta, mostra o vespeiro em que ele mexeu.
Ele batia na USP, que chamava de ‘Rive Gauche du Tietê’, na Folha de S. Paulo, em Caetano Veloso, Gilberto Gil, em Paulo Leminski, Marilena Chauí, nos Irmãos Campos, em Mario de Andrade e Oswald de Andrade. Não eram só suas opiniões que chocavam, era também a personalidade excêntrica e exuberante, e sua poesia ‘classicizante’, como escreveu Érico Nogueira, estranha a tudo ou quase tudo que era celebrado no Brasil dos anos 1990.
Ironicamente, foi no Nordeste onde ele encontrou a interlocução necessária para pensar o Brasil por outros caminhos. Lá encontrou o poeta Alberto da Cunha Melo no Recife, e, numa só madrugada, em sua casa, leu todos os seus manuscritos. Falou sobre Gilberto Freyre, na fundação por ele criada, e ressaltou a importância do Congresso Regionalista em contraposição à Semana de 22. É que o modernismo nordestino, diferente do paulista, optou por um caminho diferente: ao invés dos arroubos de ruptura que eram acima de tudo publicitários, nunca deixou de lado a tradição.
Toda uma história da cultura brasileira pode ser escrita tendo em vista a continuidade e não a ruptura, as linhas da tradição que se ligam através dos tempos, dos movimentos culturais e dos artistas individuais. Bruno Tolentino, naquele distante ano de 1996, abriu um caminho ao mesmo tempo novo e velho. Ao clamar pelo país de volta, ele mostrou um caminho que estava lá, mas escondido, tomado pela vegetação.
Entretanto, os anos que se seguiram mostraram um recrudescimento do establishment cultural que Tolentino combatia. Gilberto Gil, ícone da Tropicália, virou Ministro da Cultura do Governo Lula. Não só ministro, mas símbolo da cultura brasileira para exportação. Em setembro de 2003, ele tocou ‘Toda menina baiana’ na Assembleia Geral da ONU, tendo o secretário-geral da organização, Kofi Annan, acompanhando-o no atabaque.
Não existe imagem mais eloquente: a Tropicália, herdeira da Semana de 22, segundo o próprio Caetano Veloso, tornou-se símbolo da cultura brasileira no mundo e monopólio de alguns produtores, inclusive no cinema. Basta ver o número de documentários feitos sobre a Tropicália e os personagens envolvidos no movimento – são dezenas! É quase um subgênero do cinema documentário brasileiro.
Essa escolha não se baseou em critérios artísticos, mas principalmente ideológicos. Não basta ser um músico popular, é preciso ter lutado contra a ditadura e comungar do ideário da esquerda. A hegemonia do pensamento chegou ao auge com a máquina pública do governo federal, com seus editais, festivais de cinema, de música e de outras artes, com seus ‘Pontos de Cultura’.
Até que aconteceu um fenômeno singular: na internet, surgiu uma nova direita, que passou a questionar ponto a ponto o establishment cultural da esquerda, assim como Tolentino naquela entrevista em 1996.
Junho de 2013 é o momento em que a nova direita se configura como um movimento de massa. Um sentimento generalizado de ‘quero meu país de volta’ ressoa nas ruas. De repente, toda uma oposição ao establishment cultural e político da esquerda veio à tona colocando, num mesmo barco, conservadores e liberais, monarquistas e militares, católicos e evangélicos.
Grande parte disso se deve ao trabalho de Olavo de Carvalho. Diferente de Bruno Tolentino, que morreu em 2007 e não chegou a usar regularmente redes sociais, Olavo usou pioneiramente a internet para realizar cursos enquanto a esquerda, muito bem estabelecida nas universidades e na imprensa tradicional, desdenhava de tal ferramenta.
A presença dele na internet foi motivada sobretudo pela necessidade. Já morando nos Estados Unidos, Olavo foi sendo demitido dos jornais aos quais colaborava no Brasil como colunista.
Até que o aluno Silvio Grimaldo criou o Curso Online de Filosofia e o True Outspeak — o programa de rádio acontecia às quartas-feiras, o curso, aos sábados. Foi o curso, criado em 2008 (durou até a morte de Olavo, com 585 aulas), que garantiu o sustento dele, somados posteriormente ao sucesso dos livros. Essa iniciativa moldou a nova direita e abriu caminho para inúmeras iniciativas semelhantes.
O COF chegou a ter cinco mil alunos – cerca de trinta mil passaram pelo curso. A nova direita seguiu o caminho de Olavo: criou novos espaços na internet por não poder se inserir nos espaços tradicionais existentes: universidades, centros culturais, festivais de cinema eram hegemonicamente dominados pela esquerda.
Muitos livros foram publicados e traduzidos (alguns pela primeira vez no país) tendo em vista esse mercado criado pelo curso. Bruno Tolentino e Olavo de Carvalho – que tiveram uma longa parceria intelectual – foram responsáveis pelo resgate de autores brasileiros e pela introdução no mercado editorial de diversos autores estrangeiros. E a afinidade com esses novos autores nem é necessariamente ideólogica – José Geraldo Vieira, por exemplo, comunista, mas só foi reeditado recentemente por causa dos esforços de Olavo.
A nova direita, que muitos dizem ter seu mito fundador naquela entrevista em 1996, surge de uma postura ao mesmo tempo negativa e propositiva. Ela rejeita uma concepção da cultura brasileira que é acima de tudo ideológica, e não baseada em valores puramente artísticos, e propõe novos caminhos que se ligam ao tecido da cultura brasileira sem as amarras da academia ou os clichês da grande imprensa.”
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